O Passe Pechincha

Está Bem, junho de 2025


Querido Cláudio,

Obrigada pelo convite para apresentar o "Boi" na Feira do Livro. Será, com certeza, com toda a honra e extraordinária alegria que o farei, a não ser que a CP mo impeça, já sabes, porque, segundo alguns revisores, o passe ferroviário verde que, finalmente, me permite a deslocação para além deste apeadeiro fantasma, a Faro ou a Lisboa, se trata de um passe pechincha a 0,30 cêntimos a viagem - agora apinhada de isolados do interior como de trabalhadores das grandes cidades, ousando frequentar o intercidades para passear. Junto envio cópia de reclamação com detalhes que te não serão estranhos: a remuneração pelo trabalho permanece injusta, as condições dos combóios catastróficas e, como sempre até aqui, os explorados viram-se contra os seus iguais, perante eles abusando de pequeníssimos poderes sem que, alguma vez no seio da raiva, se denunciem a falta de carruagens e de horários por cumprir em conformidade com a dignidade dos passageiros. Ou seja, pode ser que não tenha lugar no combóio aquando da reserva ou que me expulsem a meio do caminho se arriscar embarcar sem reserva. Em todo o caso, peço-te, então, que, na minha ausência, entregues esta carta à Carolina e que seja ela, por favor, a ler o texto em anexo com a elegante cadência que lhe é característica. Peço também à Lianor que, no fim de tudo, lance o "Boi" ao ar e que o Óscar bata uma salva de palmas para, assim, encerrar essa linda cerimónia no Auditório Sul, no dia 21 de Junho, às cinco da tarde.

Tua amiga, GRITa.

PS - Envio também alguns exemplares da Palet #5 que sobraram na sede, por favor distribuam-nas nesse dia por quem vos aprouver.



Sou co-fundadora de um colectivo de artistas, pensadores e outros agentes da utopia, de que o Cláudio também faz parte. Criámos uma associação cultural e ecológica no interior serrano do concelho de Odemira e é lá que tenho trabalhado desde 2023, enquanto directora artística, a construir a nossa sede e a nossa programação. Sou editora da nossa fanzine anual, uma DRAMAzine intitulada Palet que já conta com cinco números, onde poderão encontrar inúmeras intervenções assinadas pelo Cláudio (e outras das suas construções de identidade), que passam muito pela escrita, mas não só. E sou também amiga do Cláudio há mais de 30 anos e é nessa qualidade que gostaria de apresentar o “Boi”, que hoje lançamos oficialmente.

Nem sempre assim é, mas neste caso ser-me-ia impensável abordar a obra sem antes falar do seu autor, que lhe é indissociável. Conheci o Cláudio no bairro suburbano a norte de Lisboa onde ambos vivíamos; um sítio sem quase nada, só pessoas, muitas pessoas, de variadas classes, origens e etnias, e um vasto descampado que separava as nossas torres das de Santo António dos Cavaleiros, entre as quais três centros comerciais edificados nos anos 80, com a maioria das lojas já falidas e fechadas, e alguns muros que compunham o epicentro das nossas rotinas. Ele teria cerca de 18 anos e andava no primeiro ano da faculdade. A faculdade era muito longe, porque as dificuldades das pessoas eram semelhantes às que hoje enfrentamos, mas os acessos a Lisboa piores ainda. A empresa Barraqueiro, da Joaquim Jerónimo, Lda., detinha o monopólio dos transportes públicos e era na sua frota de pior qualidade, de horários reduzidos e carreiras tão longas que as travessias da manhã e do fim do dia chegavam a durar duas horas até Entrecampos, que o Cláudio lia, fazia trabalhos de casa, estudava e escrevia poesia, cartas, letras de músicas e contos com desenhos nas margens dos cadernos. E foi também de uma dessas camionetas decrépitas, que ainda estarão em circulação, com os mesmíssimos horários e impagáveis  passes sociais, que ele, um dia, foi expulso ao soco e ao pontapé pelo motorista, quando, certa vez, se recusou a mostrar o passe: era um movimento colectivo de cidadania activa que encetámos na altura, mais tarde levado em grupo à Associação de Moradores e ao poder local sem grandes ou nenhuns desenvolvimentos.

Porque muitos dos aqui presentes conhecerão a carreira de Cláudio da Silva enquanto intérprete, encenador e até dramaturgista ou tradutor, mas alguns de vós, amigos, colegas, leitores e público, não saberão que muito antes desse impressionante trabalho, existia já todo um ininterrupto percurso de leituras ecléticas e escrita fértil que o sustenta. E, para além desse percurso artístico admirável, existe toda uma palete de qualidades humanas que se revestem de atenciosidade e respeito, que cada vez mais raramente vejo e que me importa salientar: o que de mais importante aprendi com o Cláudio, tinha eu 13 anos, foi a abrir portas ao próximo. Ao outro de que tanto se fala agora. Ele chegava-se à frente da porta do centro comercial, abria a porta e segurava-a para deixar passar quem quer que fosse que viesse atrás. E dizia-me que política é tudo aquilo que fazemos no quotidiano. Mas eu demorei algum tempo a perceber o que é que isso queria dizer, para além das cartas que enviávamos por correio ou que entregávamos em mão dentro do bairro, da zine que imprimíamos na altura com alguns amigos, dos cartazes e dos panfletos que colávamos ou pendurávamos por aí e dos livros, música e sonhos que trocávamos, como das discussões que nunca deixámos de travar. Entre nós e com os outros.

Sem mais me alongar nesta perspectiva pessoal a respeito da biografia do autor, direi então, sucintamente, sobre a obra premiada pela UCCLA/CML que: o “Boi” é literatura de géneros múltiplos, um livro que se pode ler de rajada, desde logo revelando todas as características que esperamos de um policial excitante e misterioso, como de um livro de viagens fascinantes, uma colecção de contos fantásticos, um romance epistolar elaborado através da mais distópica ficção científica, como da poética universal e ainda de acutilante crónica sócio-política, que nunca perde de vista uma fina ironia, absolutamente, original. Mas o “Boi” também oferece, a partir da experiência de uma semântica tão popular quanto erudita, antiga e pós-moderna, uma leitura analítica e reflexiva, que convida a releituras e partições. É um romance contemporâneo urgente que na leitora que sou actualizou, sobretudo, o prazer de ler ficção sobre Lisboa e Portugal, regressando assim onde, de tantas formas já me não é possível regressar - a casa; como, constantemente, partindo para destinos interiores e exteriores mais metafísicos. A geografia concreta, que associamos à ideia de realidade objectiva, é, sem dúvida, um tema do “Boi”, mas aquela outra da imaginação e da utopia também. Sem querer desvendar demasiado ou o que quer que seja sobra a narrativa e as personagens, asseguro-vos de que reconhecerão vultos, lugares e situações da nossa história comum, quer das décadas mais recentes, quer da actualidade. Asseguro-vos também de que há catarse, bela e necessária, saudável catarse.

Para terminar, peço ao Cláudio que nos ofereça a leitura de um pequeno excerto do “Boi”.

Obrigada.

https://www.guerraepaz.pt/produto/boi/

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