Abril, esperanças mil

Hoje sentei-me ao sol, devo dizer recostei-me, na melhor espreguiçadeira de que as minhas costas têm memória, a acabar um livro, entre pausas para colher nêsperas e perscrutar as flores por brotar, em véspera de nova partida para visita rápida à capital e sua outra margem. Também conversei uns minutos com um vizinho atrás da cerca, fui de regador à estação cuidar da pouca terra que ali ocupámos, servi-me de um copo de vinho verde que fui bebericando à hora da rega e de chamar o gato para casa, aquele em alegres, companheiros pulinhos canteiros afora. Depois tranquei as portas e as janelas antes do sol se pôr, como ainda faço, religiosamente, sempre que fico sozinha nesta casa que é mesmo minha, num campo estranho porque isolado e um tanto ou quanto imprevisível, mas, deliciosamente, monótono. Os pássaros cantam sem pausas, os sapos seguem coaxando, todos os sons de todos os bichos, o vento, a água e o silêncio na pele, por fim, nesta cada vez menos rara paz. Fui fazendo a mala aos pouquinhos, recolhi a roupa da corda e reguei os vasos do pátio, entretanto liguei para uma amiga em Berlim, salteei uns espinafres e comi-os com restinhos e flores do jardim. 


Abril devolveu-me a vertigem do tempo que passou, com seus sustos e seus frutos, as plantas crescendo, o dinheiro minguando, a fachada, enfim, pintada, os planos para a frente e para trás encrespando-nos com violência e também doçura, tornando-se outra coisa ainda, como sempre acontece quando nos distraímos vivendo, o desencontro e o seu revés, porque há uma vontade imensa de continuar sendo idiota até ao limite da força e da imaginação.

 

Voltei a escrever cartas e postais, enviei zines, ganhei horas em torno da cola, da tesoura e dos pincéis, fiz pacotes e envelopes, comprei mais selos, que já não se vendem em caleidoscópio em função do preço do peso total, mas das gramas, 20 gramas, um só selo nacional ou uma etiqueta impressa, que é só mais um disparate e uma roubalheira a render discussão no posto dos correios - não se irrite, não tivesse dito ela e teria sido tão só um comentário - parece não haver quem perceba uma reclamação, não mais que uma expressão de incompreensão pelo que permitimos que se perca de valioso, real, que é de todos; mas, afinal, de que servirá buscar ecos junto à Praça Dr. Oliveira Salazar, não sei ainda. E por isso continuo. 


Ler, ouvir muito, chegar à rua, ignorar as dores, olhar para o que importa aqui. O tempo da exposição é o momento do enraízamento, não importa o alheamento e a ausência de outras mãos. Soube a praça o deserto, vivam, vivam os 50 anos do 25 de Abril, não vamos voltar atrás. Depois fomos a Aljezur em busca de fomento, que encontrámos, bem como a uma amiga querida, expontânea e inesperadamente, que alegria.


O Ano do Macaco, Patti Smith, 
tradução de Helder Moura Pereira,
Quetzal Editores, 2020

 

Comments

Popular Posts