Intercidades
Claro que não há internet gratuita na mais antipática espelunca de Faro, o café da estação de combóios, em cujo sebo do chão e das mesas ocupam, quase sempre, ruidoso lugar alguns machos, alcoólicos, burgessos e agarrados no activo, quem sabe se também na reforma, todos estes num só ou vários indivíduos em volta de algum turista mais incauto, à sobra contra a parede da esplanada com vista para o parque de estacionamento. Foi aqui que me negaram a chave da casa de banho há já mais de 9 meses, depois de alguns cafés ou cervejas semanais antes ou depois de apanhar ou chegar no intercidades: só com consumo no imediato, disseram-me a cumprir ordens, nem interessa quão habitual a frequência da clientela. A casa de banho da estação também se paga e não é pouco, para além de, invariavelmente, não fechar a porta nem se poder respirar lá dentro. Nos meses de inverno, quando chove, é mais incomportável ainda fazer chichi ou lavar as mãos nesta cidade; para aguentar as horas que faltam, há que selecionar muito bem os pontos de abrigo pago em harmonioso ritmo com as pausas gratuitas para comer o farnel com o desconforto que faz nas ruas. Nem no posto de turismo parece haver safa para além do tecto: a internet é fraca e há apenas um sofá. Já não me lembro que se passava com a casa de banho pública quando ali me refugiei em pleno dilúvio, talvez fosse uma piada, talvez estivesse em permanentes obras como a da escola de condução. Faz parte da tradição local, com raras excepções que muito aprecio, trancar as portas das retretes à chave e anunciar o pagamento de 1 euro pela sua utilização por não consumidores. Ou então acompanhá-los à latrina para abrir e fechar a porta e poder controlar a manutenção da limpeza geral e ausência de papel ou outros objectos a entupir os canos em particular. É o país.
17 euros custa o bilhete de ida e volta da CP de Faro para o meu apeadeiro no interior serrano do baixo Alentejo, e é o único transporte público que ali existe, agora que os regionais foram abolidos e as três carreiras diárias só funcionam no horário escolar com destino a Odemira. Quando o combóio se atrasa mais de meia hora, não raras vezes, bebi já o meu café e alguma água, ou seja, sou capaz de urinar no infecto buraco da carruagem antes da aula teórica. Mas depois da aula prática não há alternativa a gastar, no mínimo, o preço de um café algarvio. Hoje cheguei a horas, pasme-se, e a casa de banho da escola estava de novo avariada. Depois de duas aulas, fui ali mesmo, directamente, a um café desconhecido, antes da fábrica dos óculos e da loja de animais, os afazeres desta semana. Bebi uma mini gelada, que foi o que me apeteceu pedir, antes ainda de indagar da chave da casa de banho. Doía-me a palma do pé direito, o do acelerador, que foi picado por um cardo manhoso quando andava, quase descalça, a acompanhar a cadela debaixo da figueira da vizinha desaparecida. Na volta, preparando-me para novo consumo de cerveja no mesmo simpático local, que deixara a tocar Tina Turner na rádio, longe de mais morosas andanças junto à ria ou até outras mais airosas paragens no centro, dei de caras com um grupo de velhos homens nas mesas solitárias olhando a televisão aos berros, pelo que lá me fui arrastando até à torreira da estação a contragosto.
A sorte acompanhou-me, já que o combóio para Lisboa também chegou sem atraso. Já os funcionários da limpeza correm para os seus 15 minutos de esforço contra os apressados que, prontamente, se queiram instalar (um deles, natural frequentador da esplanada da espelunca, sempre com voraz prazer em gritar-lhes que esperem), já os passageiros acabados de desembarcar invadem o balcão climatizado da espelunca. É com demasiado desagrado que peço a chave neste bulício antes de poder rumar à estufa de vidro com vista, mas sem acesso às linhas 4, 5 e 6: uma esplanada interior, vazia, com porta aberta para o cais, a saída inutilizada com fitas, a casa de banho cerrada. Poucos minutos depois, estou, enfim, sentada no estofo verde à janela, regozijando-me pela bexiga vazia, com a antecipação do fresco em movimento, desta vez livre do suplício da espera na pedra ao sol a descer em Agosto.
É também quando me lembro dos tampões e pensos higiénicos à discrição nas casas de banho de estabelecimentos comerciais, em Berlim, ou da abundância dos antigos chafarizes públicos e da gratuidade dos lavabos e copos de água - quando estes, na Lisboa da minha infância, não se negavam a ninguém -, que apalpo a distância que passou. É triste a expressão da transformação revelar-se tanto mais no imperativo de crescimento de algumas economias que na da garantia de direitos humanos básicos, entre outros.
Faltam-me uma aula teórica e 15 práticas.
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