Lima e Lopes

É véspera de Natal e o dia respira pleno de solarengo bem estar e harmonia, já não era sem tempo na data carregada de tremendos passados e ausências piores, porque presentes, ainda, eis-nos a saborear alguma paz e leve expectativa. Convido a minha sogra de 74 anos para ir dar um passeio com a cadela antes do pôr-do-sol e de nos metermos os três na cozinha. O meu marido, o filho dela, está no pátio das traseiras a entreter-se com as palhinhas do novo guarda-sol; não tarda muito teremos de novo a casa cheia de amigos, a família de todos os anos - queremos avançar com restauros e melhoramentos. Vamos à estação, eu e ela, falamos da ditadura e do passado deste povo do interior aqui de baixo, na volta seguimos pelo caminho de terra junto à ribeira. A minha sogra é uma mulher dos latifúndios da escravatura há muito preteridos pela criadagem na cidade, depois a fábrica e, por fim, a reforma; é, estranhamente, nesta linguagem, que ela mais lucidamente articula ainda saber e sensibilidade. Por entre o caniçado e a amora selvagem junta-se-nos o gato, vamos por ali os quatro a gargalhar, quando chegamos à passagem da ribeira e encontramos as ovelhas tresmalhadas do temível pastor, mais à frente sentado à conversa com um homem, o cão ao lado. Prendo a cadela, atravessamos a ribeira, as ovelhas arrepiam caminho, mas nada de sustos ou solavancos, falta-lhes, simplesmente, liderança. Nisto, vem o sujeito atrás de nós fazendo peito, gritando-me que vá passear a cadela no meu quintal. Grito-lhe que vá estudar a lei, que aprenda a viver em comunidade. Ele continua com os impropérios, eu respondo Feliz Natal! Feliz Natal! Feliz Natal! E vamo-nos os quatro afastando.

O homem persegue-nos cuspindo ódio, eu viro-me e ele está quase em cima de mim, quando aparece o nosso homem a correr, alertado pelos gritos. Pergunta-lhe o que é que se passa, o assassino racha-lhe a cabeça com o cajado de ferro na ponta. A minha sogra e eu saltamos-lhe em cima como leoas (ela da miséria, eu do ghetto), ela grita respeito, eu lanço-me de mãos aos ombros, furando-lhe os tímpanos. O homenzinho confuso recua por momentos, mas logo nos levanta o cajado. O meu marido no chão grita afastem-se, preciso de uma ambulância. Chamem a polícia. E mais nada.

Ela fica com ele, arrebanhando um pau na mão idosa enregelada, o meu príncipe do auto-controlo, que o podia ter morto ali, à besta, com um golpe de capoeira. Vêm devagar para casa atrás de mim, amparando-se, o sangue jorrando, a cadela a chorar, o gato observando tudo. Eu corro aos telefonemas e aos primeiros socorros. Mais tarde os bombeiros, a polícia, o meu marido sozinho a caminho do hospital, a vizinha do lado tratando do chá da minha sogra na cozinha, eu lá fora na escuridão em depoimentos. Pergunto: mas isto não é um crime público? Ele não vai preso? Só se tivesse sido em flagrante delito, dizem-me os guardas, o Lima e o Lopes, amáveis trabalhadores vindos de para lá da serra a mais de 50 km… é um assunto da Assembleia da República. Metam-se para dentro e tranquem-se, nós vamos falar com o agressor e fotografar a arma do crime. Façam queixa em Odemira. 

Tentativa de homicídio. Às seis da manhã dormem todos cá em casa, eu ouço a rave ininterrupta das traseiras. Não sei que diriam Lopes ou Lima.

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