Ouro líquido
Andamos há dois anos a partilhar sonhos, conselhos, soluções, explicações e reflexões, para além das uvas e das romãs, das azeitonas e da batata doce, dos tomates, das nêsperas e ervas, flores, paz, pão, vinho, cama, mesa, roupa lavada. E sobretudo tempo, que não é pouco precioso. Há semanas que as contas se vêm somando, não há fruta ou legumes da época que as ultrapassem ou sequer equivalham; quando ontem quisemos encher a bagageira, indo para lá da serra à entrega da azeitona em troca de ouro líquido, eis que o carro avaria e nos vemos depender de empréstimos. Valeu-nos o bom vaqueiro na forma de uma carrinha e a transferência de concretos euros de mais uma boa amiga do centro que rejeitámos. Milagre, bonança, capacidade de controlar o medo. Estamos há demasiado tempo demasiado obrigados.
O mais difícil é caminhar sobre a corda em acrobático silêncio. E é, também, essa adquirida ausência de pânico o que mais aterroriza o espírito analítico a longo prazo. A lógica diz-me ser vã, quem sabe orgulhosa, ou, pelo menos, sem dúvida indomável, a resistência sem fim à vista. As agruras do caminho outrora insuspeito garantem-me, no entanto, resoluções efectivas. É isso ou o abandono, a apatia, a corrente, a depressão, todas essas pequeninas, como gigantescas, mortes já vivenciadas até à inefável e inútil repetição da última sílaba congruente. Como se possível fosse, sequer, imaginar voltar à produtividade e à flexibilização, ao consumismo, aos maus tratos auto-infligidos, enfim, às inúmeras teias da mais moderna escravatura - a lamentável ideia de desistir, seja agora, daqui a bocado, alguma vez - sem agonizar mais um pouco. É impensável e triste, tão triste como desejar cristalizar-se intacto e imutável.
Obrigada, por isso, muitíssimo obrigada, ainda. Teremos abundância, sempre. Ainda que se feche a torneira ou se apague a luz por uns tempos. Tudo passa, tudo se transforma. Por nós, para os outros, pelos que passaram e pelos que vierem depois.



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