Tectos

Enquanto muitos de nós se continuam a preocupar com um estilo de vida tanto mais responsável do ponto de vista ecológico quanto a cada um possível for, em busca de um futuro mais sustentável ou, pelo menos, mais autónomo em relação aos grandes grupos económicos que ditam a nossa alimentação, habitação e consumo de energia, sustento, acesso à saúde, à informação, ao lazer, à arte e à educação de qualidade, há todo um mundo de privilégio que se alimenta destes mesmos valores na contínua busca de acumulação de riqueza. Chamemos-lhe moda que tudo absorve e corrompe em função do lucro individual, ou gentrificação de ideais ancestrais de frugalidade; actualmente, basta vaguear umas horas pelas redes sociais para, facilmente, encontrar centenas de canais de difusão do cálice sagrado da vida off grid ao alcance de todos, que é como quem diz passar a viver, simples e airosamente, fora da rede (elétrica, pelo menos, ou melhor ainda, sendo capaz de fornecer e gerir a totalidade dos serviços essenciais de forma autónoma). Muitos deles, os novos arautos da era digital, vão somando crimes no eco-sistema de que se tornaram proprietários, preferencialmente, num país de clima agradável e de terra ao desbarato como Portugal, que apregoam estar negligenciada, enquanto promovem para todo o mundo a futura sustentabilidade do negócio baseado em truques de permacultura ou de habitação de tamanho reduzido e, extremamente, icónica, seja ela uma tiny house ou uma tenda yurt... ele há capacidade de investimento para tudo enquanto se constrói uma mina de ouro "alternativa", principalmente se à capacidade inicial de investimento se vão somando frutos ininterruptos do trabalho remoto sabe-se lá a vender o quê, por exemplo produtos de design sustentável, a quem os pode comprar nos grandes centros de consumo ou em paraísos ainda mais inalcançáveis. Sobretudo se furando e construindo no desconhecimento da lei e do bom senso.

Os anos vão passando e as experiências pessoais, bem como a auto-reflexão que as mesmas inspiram, vão dando conta da nossa própria mortalidade, é a lei da vida. O tempo de experimentação vai-se extinguindo e eis que nos queremos prontos para ocupar um lugar de estabilidade, principalmente, a respeito de direitos humanos básicos como a habitação digna e salubre ou o livre e pleno desenvolvimento da personalidade através do exercício de deveres para com a comunidade. Se essa estabilidade implicar um grande risco económico em função de um estilo de vida mais dissidente, é de uma sensação de grande ansiedade e adrenalina que tratamos, diz-se que mais própria dos anos da adolescência e início da vida adulta. Por ventura juvenis, são estes traços, no entanto, que a maturidade pode actualizar enquanto trajecto único da sanidade mental. Sejamos corajosos o suficiente para arriscar tudo o que temos, tenhamos a sorte e o engenho suficientes para desafiar a solidão e vencer a burocracia e o cansaço, resta ainda um facto intransponível a declarar: esse privilégio não está ao alcance de todos, digam os vloggers da moda do “auto-sustentável” o que mais lhes aprouver somando seguidores; nem o fim da competição e consumo desenfreados, nem tão pouco a segurança de um tecto que ali nos mantenha. Muito menos a capacidade de construir e alimentar uma comunidade que o sustente, o que se encontrará a milhares de quilómetros de distância dos eco-resorts para turistas de Verão.

Seremos capazes?

Kottbusser Tor, Berlin, Maio 2021


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