A sevícia e a serviçal

A menina Migusta aprendeu a ler e a escrever de pé descalço, estômago vazio e pernas gastas na planície do Alto Alentejo. Da mais tenra madrugada ao cair do lusco-fusco, assim era nos anos 50: de quinta em quinta, a menina ajudava a mãezinha na lida da casa, o paizinho nos trabalhos de caseiro e o irmãozinho a dar todos os primeiros passos. Obediente e afoita a qualquer tarefa, valeu-lhe às doze primaveras a caridadezinha dos senhores doutores da cidade que a recrutaram como criada de dentro e de fora. Cuidando a tempo inteiro dos seus superiores rebentinhos, livrou-se, assim, das fadigas mais rústicas, ganhando, portanto, bilhete de primeira para a eterna serventia.

Mais tarde veio o 25 de Abril, também as fábricas estrangeiras se abriram ao suor das mulheres de humilde berço e era vê-las às portas da cidade a apanhar as carreiras da jorna, os pobres homens lá se ajuntando como moscas para lhes chamar putas ou vacas e sussurrar alguns piropos. Destemida e altiva, a jovem senhora dona Migusta, já casada, não tinha medo de palavras nem de surras. Orgulhava-se da autonomia conquistada e foi adquirindo cada vez mais brio na inigualável labuta que constituiu toda a sua existência. Alimentou seis homens, entre marido, irmão e filhos, muitos dos seus vícios e caprichos, encheu as mochilas e as lancheiras da escola, recheou a casa, pagou as contas, tirou a carta e inventou as férias para a família a banhos na Costa Vicentina. Entretanto, ficou a vê-los partir como pôde, com maior ou menor desapego, nunca deixando de trabalhar, nem de contribuir, voluntaria ou inconscientemente, para os bolsos do Estado como dos seus mais queridos privados.

Passados mais de 60 anos das caminhadas em jejum, no escuro, rumo à literacia, está esquecida a Migusta. Já não sabe bem o que foi o almoço ontem, o que disse há pouco ou quem a tem sabido cuidar; lembra-se melhor da porrada, do frio, da fome e da desesperança de há meio século. É com carinho que recolhe a quaisquer relíquias da meninice, aos sabores e aos sons da altura em que o melhor estaria por vir, quando ainda não sabia que as nozes e as amêndoas são de todos e nos dão mais que côdea com alho, água quente e um fio de azeite, quando um toque de concertina bastava para dar corda aos sapatos, se os tivesse, e sonhar com a fartura que, felizmente, com muita luta, soube alcançar.

Agora que, de novo, qualquer fartura escasseia, vêm dizer-lhe as coisas de que precisa, entre outros chicos-espertos, por exemplo, aqueles sórdidos saudosistas do país da sua infância. Dizem-lhe que é preciso uma limpeza, a ela que de tudo limpou desde que aprendeu a andar - dos olivais aos rabos de meninos e graúdos - e que, na terceira idade, ainda esfrega paredes carcomidas pela humidade com lixívia e ervas daninhas de cócoras. Em momentos de lucidez, a Migusta, que não só tem a quarta classe do regime, como o nono ano dos governos socialistas, sabe bem que não é de mais limpezas que precisa, nem de neoliberais excitados com o mito da meritocracia, nem de fascistas buçais que apelam aos pobrezinhos, nem de íntimos chupistas que sempre a puderam esmifrar. É só de paz e um bocadinho de atenção que ela carece, tenha alguém agora a bondade de a auxiliar. Cuidados de saúde, habitação digna, algum retorno do afecto aos animais, às plantas e ao mar, por favor; afinal, ela pouco ou nada pede. Na escola da sua fundação nunca foi ensinada a exigir, tampouco a amar.

 





À M.A., 
com esforço, gratidão e sororidade

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