Catarinas queimadas

Chega-me sempre este momento, diria eu se o verbo chegar não se tivesse tornado amargo na boca de quem o conjuga, em que o ar se torna denso demais para que os membros se possam continuar movendo natural e livremente; a partir daí, há-que pesar cada passo, analisar cada cm de pele em torno de caroços pútridos, assegurar-me de que vale a pena o esforço, sequer, de pestanejar. Está-se bem de olhos fechados, entre estados dormentes de consciência, debaixo da redoma de calor que os lençóis polares, a botija e o gato oferecem. A portada da janela é-me, enfim, aberta, chega-me o sumo de tangerina da vizinha, o silêncio interrompido pelas motas em tours nesta manhã de sábado em Janeiro irrita-me, mas o tabuleiro com torradinhas com boa manteiga, doce de mirtilo e queijo, uma caneca de leite quente com café e ananás cortado em cubinhos para comer com garfinho dourado apazigua-me, que é como quem diz que o mimo alivia, mas também amolece, o que não será o mesmo. E deixo-me ficar mais um dia. A agoniar-me com a produção de mais lixo nos contentores e nos afectos de que não se fala - e cujos resíduos não desaparecem nunca.

Estes episódios tendem a acontecer-me antes de quaisquer batalhas, ou será antes depois de quaisquer ilusões quebradas? Parece que não consigo deixar de me sentir seduzida pelo queixume interno, convencer-me de que me assenta tão bem a derrota é condição inadiável para a estabelecer. A dada altura não desisto, mas o desespero consumido não será reposto, o que, com certeza, garante, não chegar a sair nunca das margens. A abundância está nas margens, diz que diz a Sílvia Floresta, permacultora de reconhecido sucesso, mas dependerá também da capacidade de a produzir e manter, digo eu sem grandes convicções. 

Já não suporto muitos excessos e faltam-me palavras de indignação inútil. Às vezes penso em substituí-las todas por actos de que sonho ser capaz. Catarinas queimadas abundam, pela primeira vez, no jardim: resta-me desenhar possibilidades de sobrevivência contra-relógio, mas não me atrevi ainda, apesar do medo. É mais difícil caminhar no deserto, não que as saudades de avenidas largas apertem muito.


 

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