Não há espiga
Ontem foi dia da espiga, a tal que a tradição resume aos molhinhos de gramíneas, folhagem de videira e ramagem de oliveira em flor, papoilas, alecrim e malmequeres significando pão, alegria, paz, amor, saúde e abundância. Virados ao contrário, penduram-se por casa, atrás da porta, os raminhos colhidos num qualquer campo, até ao final da Primavera do ano seguinte. A tradição milenar remonta a celebrações pagãs dos ciclos da vida multiespécies, mas foi há muito absorvida pelo calendário da igreja, ou seja, também do estado, celebrando-se, oficialmente, 40 dias depois da Páscoa, na quinta-feira da Ascenção, em que, antigamente, mas não há tanto tempo assim, seria o feriado mais santo de todos, no qual se deveria rumar ao mundo rural para, em comunidade, proceder ao ancestral ritual. Cristo teria ascendido ao céu, antes e depois dele, na terra, fincar-se-ia, colectivamente, a gravidade de que todos nos compomos enquanto massa humana sob o ouro negro que é o húmus quando pleno.
Nas cidades faz o capitalismo o seu serviço, é vê-lo nas floristas, nos hortos, nos mercados e nos supermercados, mas, principalmente, nas redes sociais, cumprindo calendários plásticos, vendendo ilusões de pertença ou propósito. Nos campos abandonados também: não há espiga que falte, a não ser o trigo, claro; sobra amora selvagem e cardos d’ouro no Está Bem, já o sabíamos e vêmo-lo agora ganhar terreno, estação após estação, com todo o método de que, estranhamente, não carece a incúria - ao empobrecimento da terra. Não haver espiga é o mesmo que dizer que está tudo bem, sem problemas. Mas há espiga a dar com pau por aí fora, tombando, caindo, sendo arrasada pelas roçadeiras em fúria cumprindo a mais artificial das leis, já à espera da passagem do poder local largando veneno institucional pelas margens das vilas, dos locais e dos mesmos campos falidos. Depois vêem-se as fendas de cor da caca seca a que nos submetemos com medo do fogo; já outras plantas, flores, arbustos, árvores, são como a água que desaparece numa vertigem só, sugada até à última gota por sistemas tão arcaicos como hiper-modernos, mas, igualmente, criminosos, fantasmas que são da memória de um saber mais que perdido, corrompido.
Não há trigo, mas há espiga no Está Bem. Avena, aveia, cevada: do mar, das lebres, capim, infinitas variedades da família Poaceae. No nosso jardim, que pretende ser comunitário, entre uma vetusta oliveira e uma outra a crescer, videira em recuperação, malmequeres e papoilas autóctones, como da Califórnia, alecrim e todas as outras ervas e incontáveis plantas que lograram já suceder-se depois de quase dois anos da gravidade a que em permanência nos prestamos aqui, há espiga, sim, a consagrar a Primavera no fim de Maio.
Há espiga da grossa, dizem-me as máquinas ininterruptas no projecto de quintal de trás, por entre os destroços de cimento e os corpos caídos à seca do vestígio de pomar, dizem-me também as vozes embargadas, alteradas pela ausência de sentido cívico e pelo vagar do espírito sem rumo que não o perpétuo consumo do que quer que seja mais fácil, frente ao alpendre, junto aos carros que se acumulam num tenebroso vai e vem de subúrbio agressivo e preguiçoso. Mais não são que os irmãos falhados dos mais bem sucedidos nómadas digitais, variando apenas na espécie de escapismo e no grau de exacerbamento do individualismo latente com que, mais apaixonadamente, apregoam liberdade e respeito, impondo a lei, aparentemente, natural da horde de neo-colonizadores a que chamam população local, essa então subterrada que está nos brandos, maléficos costumes de que se vestem a indiferença e a cobardia, quando não o proveito próprio.
Não há espiga o caralho.
Que bom.
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