Fim da Linha
Quando, finalmente, pude ir para o jardim de infância pela primeira vez, depois de uma longa temporada doente, dizia a minha mãe que, para combater alguma timidez, abri a minha malinha castanha a imitar a dela, de professora, e espalhei os brinquedos todos pelo chão a jeito de convite à comunidade desconhecida. Não mudei assim tanto, no que toca à disposição para olhar em volta e partilhar, cuidando assim de mim mesma, antes de mais, mas também do outro, aquele que ali está e também se quer aproximar. Entretanto aprendi a cuidar mais do meio ambiente que nos sustenta.
Frente ao muro estacionavam-se uns quantos carros, de vez em quando, e fumavam-se cigarros atirados para o solo pobre e muito sujo. Quando aqui chegámos era só pedra, betão e restos de tinta muito antigos. O muro era bonito por si só, com as videiras selvagens do pátio contíguo deixando-se cair com charme por ele abaixo, junto a umas quantas árvores que bastavam para criar uma atmosfera de muita intimidade. Um único vizinho tinha investido numa mesa e dois bancos de madeira, com ele fizemos as primeiras refeições comunitárias e lá continuámos a celebrar aniversários, a chegada da Primavera e longas noites de Verão. Algumas fogueiras no Inverno. Trouxemos músicos, amigos e camaradas, por duas vezes no rescaldo da manifestação revolucionária do 1º de Maio em Kreuzberg… não deixando nunca de implementar respeito pela (pouca, na altura) Natureza existente. Fomos trazendo caixotes, cadeiras e sementes, encontrando-nos com mais vizinhos, começando por plantar ervas aromáticas e flores em alguns vasos, muito antes de ocuparmos todo o pátio e de nos lançarmos à criação e manutenção de um jardim fabuloso, cujo futuro começa a levantar algumas questões numa comunidade ainda incipiente no que toca a responsabilidades de maior envergadura, possivelmente, inerentes à sua sobrevivência.
Agora que pensamos em partir de facto um dia, mais próximo que longínquo, não é fácil pensar no derradeiro projecto. Já vivemos quase mais lá em baixo no pátio que cá em cima em casa, principalmente de Março a Outubro e muito intensamente desde o início da pandemia. Não há nada de que o gato mais goste, sem ser de comer, do que andar escada acima, escada abaixo todo o dia, de preferência com vários encontros de diversas espécies. Já fizemos teatro, rodas de capoeira e de poesia, projectámos videos originais e um filme, demos workshops de permacultura a vizinhos e aulas de português a crianças, houve pintura colectiva de cartazes, sessões fotográficas, exposições, reuniões, canções e muitas alegrias colectivas desde que, publicamente, nos declarámos projecto comunitário. Há amigos que aqui estiveram connosco a pensar e a habitar o espaço no início e que partiram do país, não tendo podido voltar ainda para colher frutos dos últimos anos; outros que deixaram de o ser, a quem perdemos o rasto ou que não quisemos que voltassem. Há vizinhos que se vão tornando amigos, amigos cujas visitas vão sendo cada vez mais frequentes e algumas crianças com quem ainda espero poder partilhar algumas experiências lúdico-pedagógicas in loco. Vamos ainda, amigos, plantas, animais, visitas especiais, colegas e vizinhos, continuar por aqui uns tempos a olhar os céus do Verão. Um dia o barco zarpa.
Comments
Post a Comment