Consequências

Acho que fiz uma tarte de maçã só para mim mesma pela primeira vez na vida. Esta receita remonta aos tempos memoráveis, cada vez mais distantes, da cozinha da minha avó Mariazinha: primeiro para lanches especiais, depois para aniversários de adultos e, finalmente, por insistência do meu irmão, que ao contrário de mim não aprecia sobremaneira doces carregados de açúcar e chocolate, também para a ceia de Natal. A certa altura, começámos a confeccioná-la enquanto sobremesa para qualquer jantar com convidados. A iguaria, carecendo de açúcar em demasia, mas quantidades generosas de manteiga na massa, segue a tradição britânica, em voga em Moçambique, Rodésia ou África do Sul dos anos 50,  e é, seguramente, um sucesso em qualquer parte do mundo. É-o, pelo menos, tanto em Lisboa quanto em Berlim, no meu círculo de amigos, colegas e vizinhos não veganos. 

Atrevo-me a dizer que, quando passei a prepará-la, regularmente, para os colegas do teatro infantil em que passei 5 anos, para aproveitar maçãs baratas (adereços de cena que, de outra forma, iriam parar ao lixo), consegui exponenciar a sua qualidade através da utilização de uma forma mais pequena que recuperei na cozinha da minha avó depois da sua morte. Com esta forma, de cuja perda da base na cozinha do teatro ainda não me refiz, consigo fazer, exactamente, a mesma quantidade de massa, acrescentando uma cobertura que assegura uma cozedura mais consistente do recheio simples de finas fatias de maçã, agora quase, mas não completamente, reduzidas a puré salpicado de açúcar e canela. Não sei se a minha avó ou o meu irmão concordariam, mas, cá para mim, melhor seria impossível.

A tarte, reduzida e melhorada no que à humidade e crocância diz respeito, traz-me agora de volta àqueles com quem nunca mais a poderei saborear, motivo pelo qual o momento da sua preparação se tenha tornado ritual mais caro ainda, garantindo o apreço do isolamento enquanto necessidade algo religiosa. O meu tempo, lento e inadiável, ao meter mãos à massa, transformando manteiga, farinha, açúcar e ovo numa consistência espiritual, arrasta-se na tarefa meticulosa de descascar e cortar maçãs de qualquer espécie até ao que parece ser o infinito. No final, aqueço a olhar a luz do forno e deixo escorrer as réstias de saudade pela cozedura fora. De cada vez segura da realidade intransponível da nostalgia que me constitui e alimenta. Comê-la sozinha é apenas consequente.



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