Onde há vida*

Há um mês dizia-me uma amiga, de Berlim, ainda mal eu tinha percebido o que se passava em Israel e na Palestina, desatenta que andava às notícias do mundo, embrenhada nos novos afazeres a que o isolamento das aldeias do interior, em Portugal, muitas vezes obriga, que no seu escritório se comunicava o apoio incondicional ao governo de Israel, face à sua resposta pronta ao ataque do Hamas, com içar oficial de bandeira no topo do edifício, - quaisquer posicionamentos que não este seriam entendidos enquanto anti-semitismo e implicariam despedimento imediato, pelo que, em desacordo, mais valeria não comparecer sequer ao trabalho. Esta tem sido a tónica oficial na Alemanha (que já censurou, inclusivamente, a entrega de um prémio a uma autora palestina na maior feira de literatura do mundo), onde, na realidade, grassa um anti-semitismo contemporâneo comparável, se falarmos apenas do ocidente, só talvez a França ou aos EUA; havendo, ainda assim, nesses países, resistência ao regime racista de direita radical que promove Netanyahu há demasiado tempo (a começar pela voz dos judeus pela paz na América do Norte). A Irlanda, pelo contrário, faz questão de apoiar a causa palestina a todos os custos e eu não conheço o suficiente da sua história para arriscar esgrimir motivos… mas desconfio da sua experiência face ao colonialismo inglês. Em Portugal, como é nosso costume, as opiniões dividem-se e a maioria silencia-se, particularmente, em plena crise governativa e de saúde pública que estamos. A União Europeia, perante o intolerável massacre a que assistimos nós, cidadãos do mundo, todos os dias, cada vez mais impotentes, como seria já de esperar, tem dado conta da sua incapacitante incapacidade de tomada de decisões na escolha do vocabulário a utilizar perante um cessar fogo que já se impunha, mas há quem defenda apenas pausas humanitárias na guerra contra o Hamas, que é, afinal, na prática, todo o povo palestino em Gaza, como na Cisjordânia, até que lá não sobrem palestinos, só a Palestina, mesmo que venha esta, totalmente, a desaparecer do mapa; será esse, suspeita-se, o plano original do referido estadista que, com o maior sistema de segurança de sempre, muito se estranha ter sido agora de tal forma surpreendido pelos terroristas. Nisto estamos e o exército israelita avança, não há ONGs, médicos sem fronteiras ou Nações Unidas que nos valham, nem quando a palavra genocídio reaparece, muito menos países árabes vizinhos, o que não é de hoje, nem de ontem, nem tão pouco de amanhã, se queremos, ainda, uma solução pacífica. Queremos?

Demorei um pouco a reagir, eu mesma, atordoada que fiquei em torno das imagens brutais dos ataques de 7 de Outubro e, mais ainda, confesso, com o vertiginoso aniquilamento do povo palestino, segundo Israel, a Alemanha e grande parte dos meios de comunicação ocidental, indiscutível escudo dos terroristas que os perpetraram: bebés, crianças, idosos, incapacitados, jornalistas, médicos, famílias, bairros e aldeias inteiras. Mas depressa me pus, de novo, a rever história e a ler, ver e ouvir o jornalismo independente e internacional de investigação que pude encontrar. Esbarrei às primeiras tentativas de partilhar informação ou pensamentos passíveis de criar debate, por um lado acusada de argumentos intelectual e eticamente desprezíveis, por outro de ideologia incompatível com a realidade, mas, maioritariamente, por aparente indiferença. A mim o silêncio, a censura e a apatia perante a barbárie incomodam-me muito mais que qualquer confronto, magoam-me mesmo, pelo que comecei então a reler ensaios de escritores e filósofos. Pensei retirar-me da discussão mais ou menos pública, que bem preciso da tranquilidade e do tempo para seguir co-produzindo, nas palavras de um amigo antropólogo (que diz que o futuro passa por formas radicais de solidariedade), micro-utopias - mas não consigo. 

Bastaram hoje uns quantos segundos da partilha da hashtag cease fire now nas redes sociais (em nome do nosso colectivo artístico, que afirma procurar abrir espaço às ideias de/com “o outro” no manifesto da sua fundação) para começar a perder seguidores. A frase aparece por cima de uma fotografia da capa de um livrinho fundamental de Amos Oz, o famoso escritor israelita acusado de traição por todos os lados, talvez porque, precisamente, aqueles tentou por toda a vida compreender e conciliar - atitude impensável depois de 1995, em que assistimos ao assassinato de Yitzhak Rabin e, consequentemente, às derradeiras tentativas genuínas de forjar a paz no médio oriente. Já ninguém quer ouvir falar de compromisso, menos ainda de consensos, preparados que estamos já, talvez, para o fim de tudo.

Perante as reacções, absolutamente, polarizadas, parece-me agora indiscutível que a capacidade de ler, escrever e pensar por si mesmo, de ouvir que seja, quanto mais se de perspectivas díspares se tratar, para além de um preguiçoso mover de dedo para cima e para baixo, apanhando uns vislumbres de opinião, não importa se, como e onde fundada, está, um pouco por todo o lado, radicalmente, extinta. Soundbytes é o que nos resta, mesmo quando do extermínio de biodiversidade ou da vitalidade lastimável das últimas democracias falamos. Tomar um partido, rápida e irreflectidamente, não é mais que outra face de um escapismo adolescente que tudo simplifica e com pouco ou nada se compromete, como se, instantaneamente, definir da natureza do bom ou do mau fosse, de facto, bastante e do que mais precisamos para seguir existindo. O debate está morto, a esperança noutro fim arrepiou, irremediavelmente, caminho. Não creio vir a convencer-me ainda de outra coisa que não do avanço das tecnologias na direcção oposta à nossa humanidade ou, antes, à capacidade humana de privilegiar a vida sobre a ganância.






*Amos Oz, Contra o Fanatismo (HOW TO CURE A FANATIC),
Tradução Henrique Tavares e Castro, 
Co-edição ASA Editores e PÚBLICO,
2002



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