Frisos e rodapés
Foi o dia mais curto do ano e o frio já aperta pelo tecido adentro, instalando-se por largas horas. Ao início da tarde faz sol, distraímos-nos com as pequenas coisas que continuarão ficando conosco até que sejam feitas, resolvidas, repostas por outras semelhantes quando pudermos dizer-nos, de novo, que temos de parar e olhar para elas. Os meses de chegada não restaram para os de partida, são cálculos alinhavados, estes; é todo um alucínio da contabilidade sem tréguas, agora. Ao fim do dia liga-se o aquecedor e sonha-se com a salamandra da sala e a lareira da cozinha da casa que há-de ser habitada. Não conseguimos instalar um bidão a tempo para queimar uns troncos nesta. Lavo o pincel e calço as luvas sem dedos, penso que tenho que trocar as sandálias da sapateira pelas botas de pêlo dos caixotes. Além disso, preciso de pantufas dignas desse nome. Faço chá de cidreira para os dois e vou até ao jardim, ele pousa a enxada e mostra-me os caminhos novos; eu faço uma chamada e planeio o fim d‘ano. Às seis da tarde é noite cerrada e a geada vai ocupando lugar pela madrugada. Expresso o desejo de trocar a mesa de mármore pela mesa de camilha com braseira da minha avó - comprávamos era um tapete de serapilheira para cobrir o chão de mosaico por baixo. Não sei se ainda podemos comprar as coisas de que precisamos ou quando é que precisamos de poder voltar a comprar coisas. O que eu já sei é que as plantas não esperam.
As árvores transplantadas acabaram de ser cobertas, as azeitonas na quinta não chegaram a ser colhidas: tínhamos ficado sem carro no fim do Verão, depois meteram-se as obras do sótão no Outono e os pássaros foram-nas comendo, as que não caíram. Os lagares fecharam no fim de Novembro. Sobraram a poda, para Fevereiro, o desmatamento do silvado e das invasivas junto à água. Ainda nos falta a serra eléctrica, um colchão, outro aquecedor. Claro que não fomos a Cabanas ou a Braga, quanto mais ao Gerês. Ele não pôs chão no sótão, nem sequer o comprámos. Eu não tratei das fotografias e dos textos do website, de acabar de ler os livros da biblioteca de Odemira ou de escrever postais e cartas. Fomos a Évora e na volta parámos em Castro Verde, lá descemos as ruas, subimos à praça, comemos sopas de tomate e migas de espargos, comprámos plantas e ouvimos os rapazes cantar. Em Santa Clara enviámos uma encomenda, em Sabóia imprimimos mais zines, plantámos azevinho no Está Bem e encaixámos mais coisas em menos dias nos quadradinhos com setas para a frente e para trás no calendário. Antes tínhamos ido juntos às compras a Faro, mas perdi a aula de código. Visitámos a garrafeira, a papelaria e a loja de artes, vagueámos nas ruas, descobrimos a loja da bruxa para comprar pau santo, estava calor e sentámo-nos nas escadinhas do teatro a comer o farnel (era o que fazia no Verão a ler a biografia do Luiz Pacheco); depois fomos ao supermercado por causa do bacalhau, entrámos e saímos da loja dos objectos inúteis e ainda comprámos bolachas de alfarroba e um ramo de tomilho no mercado de Natal. À saída deixámos o rádio a arranjar, ele continuava triste.
Parece que estamos, permanentemente, atrasados e que nunca chegaremos a tudo. E, no entanto, ao serão recolhemos com o gato às mantas, aos estofos, às luzes de Natal e dos nossos candeeiros cor de laranja, bebemos um digestivo e adormecemos a ver um filme ou três. Outras vezes fico sozinha no bar a pôr discos ou a ouvir a Antena 3. Já temos microfone e mais colunas. Ontem fizemos bolachas de limão e arroz doce, hoje acabei de pintar o corredor, pendurei uns posters e ele fez costura. Tem sido assim, finalmente. Se calhar é isso mesmo, a vida e a vertigem do medo da sua ausência. Haja espaço e tempo para os discernir, amanhã voltamos a Faro.
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