Chão que já deu uvas
Cheirava a ria hoje, à chegada, no Faro das minhas sextas feiras, que é como quem diz Tavira, Cabanas, mãe, pai, irmão, barco, trauma, ilha - esta quem, provavelmente, seria eu agora, não fosse pelo amor e companhia que me envolvem como sombra à torreira e conforto, também, no ameno céu estrelado, raro é agora o nevoeiro de madrugada, quando o gato me acorda e se atropela com a pressa, que é também a da cadela, de sair porta da cozinha afora: ele para mais um dia da aventura que é a liberdade, ela para um xixi rápido, o mais longe de casa possível, ainda assim dentro da propriedade, voltando, logo de seguida, alegre e, sempre, aliviada, para, muito pacientemente, esperar pelo passeio matinal e pequeno-almoço farto assim que eu me levante de vez. Estaria maré baixa. Faz quase um ano de Kotti Café e cerca de dois meses de Nina Areia, no fim do mês, um ano desde que aqui vivemos, o meu companheiro conosco, a Sul de quase todas as outras referências.
Bebo uma imperial que podia estar bem mais gelada, numa das muitas esplanadas desta simpática cidade, onde, não raras vezes, me chamam menina e já usufruo de internet gratuita sem ter que pedir a password. Falta cerca de uma hora para caminhar até à estação dos combóios, quem sabe regressar a casa a horas; espera-me a rega, pela qual agora sou, quase exclusivamente, responsável, como os mimos da cadela e os cuidados para com ela; já os ritmos das necessidades e do afecto do gato são mais aleatórios, ou democráticos, não se pode contar com ele à nossa medida.
Acabei há pouco um longo texto de reflexão sobre um festival de performance, encomendado por uma associação cultural de Almada. Resta-me agora estudar para o exame de código, acabar as aulas práticas, passar também nesse exame, entretanto atacar, por fim, a contabilidade pessoal e colectiva, desenvolver o website e alguma oferta comercial para o sucesso da nossa associação... eventualmente, fazer-me também à insípida estrada das candidaturas para apoios à actividade artística. No jardim crescem uma plateia e um palco, um galinheiro e todos os legumes, flores, arbustos e àrvores que fomos capazes de semear, replantar e ver ganhar vida neste primeiro ano. O meu companheiro começou já um ganha pão diário a alguns quilómetros, eu aguardo os progressos da carta de condução para poder fazer o mesmo, apaziguar um pouco do nosso receio da falência de todo o projecto. Terá passado já o maior medo de falhar, terão ajudado algumas recentes contribuições monetárias de solidárias amigas - atrevendo-me eu a pedi-las, enfim, não há arrogância que sempre dure, se o destino é a utopia -, assim como o término do conflito que se levantou no olho da tempestade das prioridades distintas.
Recuperei a minha linguagem escrita, parece-me, nas semanas que passei à mesa da sala, no sofá do bar e pelo jardim, a escrever com a Areia como fiel balança, obrigando-me também a justas pausas a mangueira, um gim tónico ocasional e muitas azeitonas, pão alentejano ou bolachas de água e sal com queijo de ovelha. Sinto-me mais ágil e confiante, que bom, agora que é Verão e há, para já, algum trabalho remunerado, pontualmente, amigos, família e praia, vontade de ler e de manter a lida da casa e do corpo. Faltam ainda algumas coisas, já se sabe, dessas se tratará quase a tempo de não terem ainda chegado outras.
Só se estará bem no mar ou no chão de mosaico lavado dentro de casa. A roupa cola-se-me às costas na cadeira de plástico, como se colara já à barriga no banco estofado do carro. Corre agora uma brisa, espectacular seria ir de barco para leste da ria. Nem por isso me impelem as memórias a desejar permanecer na cidade, junto ao cais ou nas apertadas ruas, ainda que houvesse boa música ao vivo, ou qualquer outra mais agitada tentação dos sentidos. Aguarda-me a contemplação à janela, no fresquinho da carruagem 22 serra acima, depois será tempo de abrir os portões, trocar abraços e ligar a água - maravilha.
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