Deserta

Não está de vacas gordas, ou magras, no que me toca, este tempo que sem grandes sobressaltos tentamos entabular sob o sol escaldante de Julho, com pressa de chegar a Agosto. Vivemos agora o paradoxo intermédio, esperamos, de nunca ter tido tanto tendo tão, assustadoramente, pouco. Tanto leia-se desfrute quase ilimitado da Nartureza, pouco leia-se capital que determina esse mesmo advérbio. Não percas os passinhos, dizia uma tia emprestada (e a grande custo devolvida, não sem perda de incontáveis cauções), assim que alguém, que não ela, se levantava da mesa de família para que, dirigindo-se à cozinha, aproveitasse a viagem logo levando o que necessário fosse para a copa. Sábia que era essa senhora, à parte suas tenebrosas faltas morais e afectivas, compreendia de forma cristalina a economia do lar, sabendo, naturalmente, que qualquer esforço pessoal poderá sair, duplamente, recompensado, se o investimento for, igualmente, feito a dobrar. São demasiados cálculos a que nos obrigamos, incompreensíveis, por ventura, onde fartura há, como era e, tantas vezes, é, ainda, o caso; aqueles revestem-se, no entanto, de uma cautelar sensatez que, como, não raras vezes, sucede aos actos de múltiplo carácter, também, os poderá, por instantes, converter em mais prazerosos instintos. Principalmente, agora se vê, onde não abundam palpáveis meios.


Apanhámos, finalmente, um barco para leste da Formosa, a ria do meu horizonte natural, agora habitual -, o que não significa, fácil ou seguramente, alcançável. Tínhamos deixado o carro na oficina e o comboio de volta a casa esperava-nos pelas seis da tarde.


Existe ainda uma indescritível alegria infantil percorrendo-me os sentidos ao atravessar estas águas, pena a lentidão do ferry, a lotação mais que esgotada da lancha e o preço dos bilhetes para quem, em Portugal, trabalha ou está desempregado. Ou talvez a consciência das duas únicas horas a que teríamos direito, uma vez alcançada terra prometida, constituísse, no fundo, a natureza do senão.



Não fomos explorar a ilha que, não estando deserta, de imediato faz jus ao nome pela ausência de infindáveis infraestruturas e ruidosas trocas comerciais… o tempo era, como disse sabermos, escasso, pelo que decidimos ficar-nos logo por ali a ver passar gaivotas e barquinhos. Ele acocora-se às conchinhas, eu submeto-me à adoração da maré.


Estou no meu elemento, não há minuto de dúvida entrando e saindo do mar, deixando-me cair na areia, cheirando em qualquer direcção. Foi aqui que, a par com as muitas horas de ballet que mais para trás ainda ficaram, me cresceram as mais variadas técnicas de perfeita evasão.


Dois dias depois voltámos ao espelho Algarvio, naturalmente, em experiente manobra de diversão de turismo de massa em mais concorrido barlavento. Era tempo de ir buscar o carro, desta feita o horário do comboio a atentar realizara-se na ida, mas havia, ainda assim, que passar no supermercado. Aventurámo-nos em conversa na noite serrana de regresso perdendo quilómetros, já a cadela e o gato exasperavam e o peixinho fresco na geleira não chegava ao forno, a rega por fazer. O vinho verde estava quase fresco, o insuportável calor já passara. Jantámos e fomos dormir.


Deserta continuo por mais eficaz libertação. Talvez que na ilusão da ausência pontual de uma omnipresente lista de gastos e tarefas se dissolvam, alguma vez, as frouxas ondas da tensão acumulada. Os receios, esses, estarão para ficar. Pelo menos enquanto for Verão nas ilhas da minha expectativa.

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