Era uma vez um vizinho

No meu pátio, dantes, juntávamo-nos em volta do fogo. Assim foi durante uns tempos desde que, há uns anos, os nossos vizinhos mais presentes se nos juntaram no desejo de ali comungar de algum calor. Isto foi muito antes da pandemia nos fazer abrandar olhando em volta. Juntos comprámos uma Feuerschale, que é uma taça de ferro para fazer fogo (dir-se-á braseira?). Em seu redor nos passámos a encontrar no dia dos mortos, no fim do ano, em festas de aniversário e em qualquer outra data em que, expontaneamente, a algum de nós apetecessem chamas com ou sem mais companhia, vinho quente, música ou poesia. Reuníamo-nos com frequência ao longo das estações mais frias, mas também em algumas noites mais inspiradas durante o Verão. Às vezes combinávamos, às vezes bastava o convite do cheiro para descer as escadas e nos sentirmos parte. Era desse mesmo cheiro que não gostava o vizinho do último andar da fachada da frente.

O vizinho lá de cima sentia-se incomodado com o fumo e com o cheiro a madeira queimada; evocavam-lhe, dizia, terrores testemunhos do incêndio no prédio em frente. Gostava da vista do jardim em sua memória e de alguns animais também, mas não queria conversas com o jardineiro, nem com a mulher do jardineiro ou demais vizinhos que a eles se juntassem. Talvez por isso gritasse da janela quando lhe cheirava a fumo. Há muito que o vizinho não se via. Se, num momento de raiva maior, por vezes, se acercara a meio de um encontro à braseira comunal para comunicar desagrado para com a expontaneidade do acto, agora já mal se vislumbravam os seus contornos lá do alto.

Um dia, no Verão passado, abordei a mulher do vizinho. Pensei que pudéssemos conversar sobre o fumo. Ela acercou-se com decretos de lei, disse ser da paz. No dia seguinte, todos recebemos uma carta do senhorio a proibir fogueiras na braseira do pátio. O jardineiro encheu-a do nosso melhor composto e nela plantou flores. O pátio está gelado, nas escadas jamais cheira a lume; na braseira, no entanto, há flores que ainda resistem ao frio. É mais bela, de certeza, a vista da janela dos vizinhos do quarto andar.




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