Morangos, malmequeres e bem quereres

Que triste que é quando da colheita crescem azedumes. Julgara ter dado cabo da minha, se não universal, necessidade de reconhecimento, através da preserverança e do isolamento, que é como quem diz fazer tudo sozinha por gosto e não esperar por qualquer colaboração, quanto mais gratidão, mas, absolutamente, por nada de parte da comunidade parasitária; nada a não ser, claro, que me deixem em paz. Alguém em quem acredito disse-me, várias vezes até, que para permanecer livre de desilusões ou sentimentos de injustiça, há que não partir de quaisquer expectativas que não preguiça natural, egoísmo e estupidez humana: um pouco brutal, a perspectiva, mas se já a tivesse conseguido desenvolver, naturalmente, menos me pesariam agora os despojos da indiferença que continuo sentindo enquanto injustiça.

Alguns dos novos vizinhos têm vindo a aproximar-se, querendo saber da história deste pequeno paraíso arrancado às pedras, que constitui a ocupação de quase uma década do pátio comum através de jardinagem, arte e engajamento social, auscultando como contribuir e dele fazer parte, com mais ou menos vontade de contribuir de facto em trabalho ou com fundos, é certo, mas comunicando. Tentei, sozinha que estive ao longo dos últimos quase quatro meses ao serviço do seu cuidado, fazer o que soube e pude para os receber de forma aberta e atenta às suas necessidades específicas, famílias jovens que são, com crianças sedentas de explorar a vida. Os outros, os que assistiram ao espaço de vazio e cimento ganhando matéria viva, ao fogo em frente que a envenenou, ao abate das árvores e, sobretudo, à capacidade de trabalho e imaginação que tudo reinventou e manteve através das mais diversas tentativas de criar comunidade, consensos e futuro, afastaram-se perante o trabalho, antes de mais, aquele de agir e comunicar colectivamente, bem como daquele mais prático no terreno e no dia-a-dia, assumindo, no entanto, uma posição de apoio informal (que pouco se traduziu em colaborações ou compromissos), unem-se agora na defesa da sua apatia, continuando a consumir o espaço como a cada momento lhes apetecer e sem contribuir sequer com a tomada da sua posição genuína. Por uma questão de direito, dizem ou deixam por dizer num embriagado impulso. Legalmente: nada têm que fazer, nada têm que pagar, nada têm que dizer e, já agora, em nada têm que respeitar quem tudo isso e mais ainda faz. Aqueles com quem primeiro esgrimimos ideias e necessidades, aqueles para quem e com quem organizámos celebrações pessoais, com quem festejámos todos os feitos do projecto, estação após estação, atacam-nos agora parecendo exigir, retroactivamente, mas nem por isso, não se percebe, exactamente, o quê senão um vago direito ao individualismo radical. E parece que somos nós quem os tem impedido, ao usufruto do seu direito, o meu companheiro, jardineiro de profissão e autor absoluto do jardim, e eu mesma, artista pró-activa no espaço envolvente, criado para todos, activistas pela comunidade, pela comunicação e pela defesa de todo o ecossistema. O que terá mudado sem que me apercebesse?

Na realidade nada mudou; a ser possível existir e continuar existindo um jardim idílico entre lixo e falta de vontade, ainda assim, para todos, tem-no sido porque o foi fazendo o jardineiro, eu mesma seguindo-o semeando, regando, colhendo, limpando, partilhando, mas também aceitando silêncios, desaparecimentos, oportunismos e abusos, na perspectiva voluntária de todos que assim o quiseram e aceitaram, calando ou não eventuais quereres distintos. Em nenhuma circunstância, na longevidade que a obra implica, nos foram esses hipotéticos valores levantados. Quer pelo esquecimento do caminho aberto, ignorando os passos que nos trouxeram até aqui - à criação de zonas a manter, ao calendário de tarefas, à lista de regras de utilização do espaço, à transparência do orçamento com que, anualmente, investimos no jardim, sozinhos e algumas vezes, raras, com contribuições pontuais -, quer pela súbita e aparente insatisfação com [as "minhas"] decisões e imposições, são estes, os que me conhecem e com quem sempre fiz questão de tentar imaginar o que se seguirá em processo colectivo, incluindo os seus desejos na criação levada a cabo, quase sempre, pelas nossas mãos sem as deles, os que agora me amarguram, se eu deixar. Não porque me tenha abandonado à ilusão da sua colaboração efectiva, mas porque no isolamento da minha dedicação me esqueci que a complacência nada garante, nada, nem sequer o reconhecimento do inquestionável direito ao usufruto sem interferências de vontades pontuais e usurpadoras, a lealdade ou a memória. Uns quantos fugazes momentos de convívio, se tanto.

Agora que está tudo lindo uma vez mais e pronto a ser usado ao longo dos meses de calor, é tão fácil questionar a ordem dos móveis, desdenhar dos passos que mantêm a simplicidade da rega ou a segurança das plantas. Legalmente, todo e qualquer um que pague a renda e o condomínio se pode sentar onde, quando e como quiser e usufruir da Natureza e dos resultados dos projectos desenvolvidos no pátio. O resto é uma questão de ética, o que como tudo que se reveste de filosofia e muitas horas de deliberação, não interessa a muita gente. Gente que, irreparavelmente, me vai deixando de interessar. Gente que se quer livre do que é comum e tem que ser gerido ou nem sequer chega a existir. Gente que, pelos vistos, acredita querer sentar-se com igual direito e satisfação num vazio quadrado de cimento, carros estacionados e beatas no chão, desde que obrigada a coisa nenhuma. Mas não o faz, senão onde o prazer maior é por outros sustentado. Por si testemunhado, por vezes aplaudido, quase sempre co-vivenciado.

Infelizmente, com o interesse por esta gente vai-se também um pouco do prazer de produzir e manter a Natureza e as áreas de lazer humano para mim mesma, esmorece a alegria geral de aqui pertencer; fica apenas, e por algum tempo, a certeza de não ter chegado ainda onde sempre quis. Resta um silêncio circundante que tenta amordaçar o que não vai calar em mim, o continuar do bem querer haja o que houver, incluindo preguiça, egoísmo e estupidez. Sobra a amargura que decorre da inusitada solidão, mas há que colher o que cresce, também morangos, também todas as outras flores que não malmequeres, também elas parte destes prados agora de pé enquanto alimento para tantos seres de interesse geral - isto é, havendo capacidade de o reconhecer. É esse o problema maior da ocupação consequente do espaço público, a carência da tal capacidade cooperante de reconhecimento do interesse geral, quiçá de algum relevo para a sociedade. A que há e a por vir.





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