A Loba e os Escalavardos
No dia 26 levantei-me a muito custo com um sol radioso, a chuva tinha parado e a água corria já vigorosa ainda um pouco barrenta. Fizemos-nos ao calhambeque com a cadela e a minha sogra para um frio passeio à beira rio. Uma delirava entre poças e cheiros frescos, a outra atenuava devagarinho a densidade do ambiente, que se instalara de véspera, desenterrando vestígios de roupa lavada em saudosos ribeiros. Ambas a precisar de desentorpecer os membros e aliviar digestões. Comprámos ovos, mas esquecemo-nos do óleo para mais fritos: talvez tenha sido esta a primeiríssima vez em que juntos demos cabo dos doces. A mousse tinha ficado perfeita, as rabanadas deliciosas e até o bolo rainha de compra se foi indo. A roupa velha estava divinal, tínhamos comentado ao jantar a estranheza de tamanha perfeição ignorante do estado do mundo e dos desígnios nacionais (a começar pelo ignominioso discurso do primeiro ministro). A vida continua, diz-se como apanágio da tragédia ou verdade indiscutível. Enterramos os mortos e seguimos respirando para cuidar dos vivos que somos.
Há muitos, muitos anos que o Natal me pesa numa normalidade cujo equilíbrio tenho vindo a conquistar a pulso. Este é o terceiro que aqui passamos sem trabalho, lazer ou amigos que o distraiam. No primeiro atrapalharam-me mensagens e telefonemas inesperados, no segundo atacaram-nos a maldade sobre inveja e cobiça vizinhas erguida e, finalmente, pela resistência dissolvida. Desta vez correra tudo bem, não tivesse sido o vislumbre de uma mensagem que nem cheguei a ler, apagando-a e desligando, logo de seguida, o telefone, a tempo ainda dos preparativos em autêntica família com insuspeita harmonia. Os telefonemas queridos, naturalmente, presentes e as ausências que moem tão longe quanto possível. Era noite do dia de Natal, a tarde passada em sossego junto ao conforto da costura no cadeirão verde e os meus trabalhos manuais há tanto preteridos no plástico sobre a mesa ainda posta de renda, velas e sobras, o homem supostamente de molho a dormitar entre filmes, na verdade sem pausas na bricolage; estava a sogra já quentinha no sofá com o gato a ver televisão ao pé da árvore com luzes e egrégios enfeites, quando saímos em casal com a cadela para a última volta. Foi com absoluto terror que descobrimos as penas das galinhas - as nossas Kikis que em nove meses se haviam tornado substância incontornável da felicidade certa de cada um dos meus dias, espalhadas por todo o jardim denunciando a luta e a barbárie. Foram os escalavardos, disse ele, buscando pedaços inenarráveis, enterrando-os depois. Insisti que palmilhássemos as margens encharcadas na ínfima esperança de que a Chambuca, a galinha voadora, se tivesse escapado à chacina e pudesse estar escondida debaixo de algum arbusto à nossa espera. Já tinha acontecido algumas vezes esquecermo-nos de fechar o galinheiro, deixando a Star e a Sparkle lá dentro apavoradas com os olhinhos abertos na escuridão, a galinha voadora debaixo de uma vinha sem conseguir voltar para casa, de manhã vindo a correr esbaforida e a reclamar com razão. E os antigos bem nos tinham avisado, que os escalavardos aí andam em barda sem predadores que valham a esquecimentos humanos.
A minha sogra vai já em viagem com o filho de volta a casa. A maior parte da louça foi lavada e será arrumada de volta ao grande armário das relíquias, os lençóis e as toalhas estão lavados e pendurados na corda. Eu limitei-me a acordar em lágrimas e bastante ingratidão perante a visão do último ovo cozido no prato do almoço, andava a pensar que fazer dele em jeito de homenagem. Falei com uma boa amiga que diz enormidades, enviei mensagem àquela outra que diz que brincar é uma maneira de estarmos juntos a pensar mais do que com a cabeça. Os outros amigos que são também família estão doentes, não sabemos ainda quantos seremos este ano em volta do fogo da renovação. Seja como for, é um facto que as nossas vidas continuam, celebraremos o fim e o início de mais um ciclo comum em tradições por nós lavradas.
Passaram as cinco e meia da tarde, a hora em que nas últimas semanas nos recolhíamos depois de cair o sol e fechar o galinheiro. A última vez foi a 24 de Dezembro depois de abrir uma bela romã: a Chambuca andava alegre em contínua malandragem nas hortas. A Star e a Sparkle numa gulosa correria a fazer-me rir em voz alta; aquela última, estranhamente, pedindo festinhas que nunca lhe haviam sido tão queridas quanto às outras duas. Chegou-se inclusive ao nosso homem que a nós se juntara num esforço de repouso e comunhão, ambos na verdíssima erva que cresce nos fardos de palha. Foi deles a derradeira fotografia antes da retirada ao abrigo. Nós dirigimo-nos depois, com alguma leveza, às panelas das couves, das batatas, do bacalhau e dos melhores ovos da minha vida. Regressei há pouco ao jardim com a Areia e fumei um cigarro com vista para o vazio. Tornámos as duas à toca com o Kotti, que já comeu de novo e se enroscou sozinho nas mantas. Tento apreciar o calor imenso que me rodeia e afinar as minhas responsabilidades evitando a inutilidade da culpa. Parece ser sobretudo de uma infinita tristeza que se parece sempre agora pintar, sem apelo nem agravo, esta efeméride. Mais logo sairei à noite num uivo mudo.
Da importância do equilíbrio do ecossistema: Saca-rabos ou Escalavardos, como aqui são chamados pelos locais, ter-se-ão tornado praga na região pela ausência de predadores naturais como lobos, linces ou águias. https://biodiversidade.com.pt/biogaleria/sacarrabos-conheca-o-rato-dos-faraos/



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