Deserto

Recebi hoje o reenvio de uma chamada para um casting extraordinário. Não deixando, naturalmente, de anunciar trabalho precário a ter lugar em Abril, tratar-se-á de uma simulação de abuso de direitos humanos com cerca de quarenta actores, divididos por grupos e turnos ao longo de um a dois dias, a representar governantes, forças policiais, activistas e outros civis num qualquer campo dos arrabaldes de Lisboa. Destinando-se a internacionais estudantes de direito, que com aqueles poderão interagir e cometer erros num ambiente controlado [e ficcional], oferecer-lhes-á a encenação um treino intensivo e  capaz de desenvolver

  as habilidades investigativas, a coragem e a empatia 

da próxima geração de defensores dos direitos humanos. 

Pese embora a ausência habitual de informação relativa a hipotético contrato e revelando, já no primeiro contacto, a costumeira omissão de justa remuneração, bem como muito questionáveis condições de trabalho, soou-me o teor desta proposta a feliz incidência de lucidez temporária, ainda que hipócrita, num horizonte que, sem pudor ou misericórdia, se me vem, inenarravelmente, adensando de escabrosa forma. Serviu-me a distração o propósito de traduzir e refazer o meu curriculum, que jazia num ficheiro faz mais de dois anos. Quanto a trabalho por vir, de seu préstimo ou dignidade mais tarde, como sempre, se verá.

Partiu, finalmente, com algum alívio, quem sabe se duradouro resquício, de regresso ao gigantesco consumo do mais imediato, a demorada donzela de janela fechada para a oliveira. Partiu, rumo a África, o súbito viajante de bicicleta com passageiros arraiais assentes na invernada diante dela. Ficaram o inquebrável aroma de iogurte e perfume adocicado que a moda dita e o fumo velho de tabaco não pode tão depressa disfarçar; a inútil resenha da ordem com belas fotografias anexadas; o abismo que a paz também sabe fazer romper.

Tão raras e saudáveis são as experiências de vida que seguimos, teimosamente, proporcionando aos incautos que nos encontram em aparente renúncia e convizinho sabor a fel, consistência de grão de areia.