Medo do escuro


Não me recordo de ter tido medo do escuro, desde muito cedo preferi adormecer sozinha na escuridão do meu próprio quarto. A memória desta nítida sensação remete à casa onde vivi até aos 6 anos de idade e à segurança da minha cama no meu quarto de então, paredes-meias, de madeira, com o quarto dos meus pais e a varanda (ou talvez fosse uma janela para a rua). Acho que o Modigliani teve algo a ver com isso. Um dia acordei de um pesadelo aos gritos na cama dos meus pais, que, para além de uma colcha vermelha e prateada às riscas, muito bonita, iluminada pelas luzes baixas das mesas de cabeceira, tinha vista para a gravura de uma mulher sinistra de cara afilada. Aquele rosto perseguiu-me grande parte da vida inconsciente sem que soubesse porquê, até que, depois de um sonho mais presente, daqueles que sabemos verbalizar quando acordamos, me lembrei do quadro de tons azuis e pretos atrás da porta entre os dois quartos. E perguntei à minha mãe se ela sabia de quem se tratava. Ela riu-se e disse que era uma mulher do Modigliani.

Foi em Junho de 2013 que sonhei de novo com a mulher do Modigliani. A tristeza incontornável em que me havia deixado a ressaca da exaustão dos movimentos sociais dos anos anteriores tinha-me atirado para uma crise existencial, que acabou por definir as decisões fundadoras dos anos seguintes e pela qual ainda estou grata (assim como pelo sistema de saúde mental na Alemanha). Os sonhos mais relevantes são, para mim,  repletos de aventuras e mudanças de género: o terror caminha lado a lado com o drama ou a comédia, se de repente estou num pesadelo, posso encontrar-me numa estimulante fantasia erótica  no momento seguinte. A mulher do Modigliani manifestou-se-me no que mais se parece a um devaneio filosófico de autor a meio de um thriller psicológico... 

Tínhamos ido a um centro comercial, eu e o meu companheiro, para tratar de um qualquer assunto burocrático que me dizia respeito. No topo de umas escadas rolantes num segundo ou terceiro andar, somos, repentina e brutalmente, cercados por seguranças e polícias que me atiram ao chão, retiram os documentos e acusam de um delito grave, que nós sabemos ser mentira: de ter tentado cometer suicídio. Eu nego, ele nega, não nos permitem qualquer defesa. Não entro em pânico, há uma sensação de inevitabilidade. Nós já sabíamos que isto um dia podia acontecer. Está lá uma mulher anódina de fato, que me olha do alto do seu silêncio, acho que é dos serviços secretos, e parece dizer isso mesmo, que isto já era esperado. Vou participar num documentário sobre a acusação de tentativa de suicídio. Penso nisto depois, enquanto caminho sozinha ao longo do canal. Vejo-me de frente, sentada na borda de um velho barco de madeira, com longos cabelos pretos escorridos, pés na água e olhos opacos postos nela. A água é negra e assustadoramente parada, é um lago rodeado de sombras em volta. Sou eu a mulher do Modigliani. Depois bato à porta de um antigo camarada do Echte Demokratie Jetzt, por quem não nutria especial simpatia, pelo contrário. Era um quarto num corredor de hotel de beira de estrada, como num filme americano. Ele abre a porta e não é bem ele: está completamente nu e tem calçadas botas pretas da tropa, os cabelos muito compridos. O quarto está repleto de perucas de várias cores, é um bastidor de cinema. Eu entro e digo: "It's a shame we can't fuck" (na altura não falava muito alemão).  E ele pergunta  porque não, circunstancialmente, sem urgência ou especial curiosidade. A resposta ainda me ocupa de tempos a tempos.



 

 

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