Cuidado com a Cuca
O primeiro cenário da queda foi o elevador da casa da minha avó. Era num edifício típico da Lisboa dos anos 70, entrando pelas portas pesadas de vidro para o hall de entrada, subindo os degraus em mármore das caixas de correio ao patamar do rés do chão e esperando por um dos dois elevadores forrados a linóleo azul no interior, onde havia um espelho rectângular debruado a metal, no qual, provavelmente, me examinei mais vezes na vida do que em qualquer outro, ao chegar a casa depois da escola para almoçar. Nessa altura eu tinha vergonha de usar óculos e ainda não usava lentes de contacto, pelo que andava meio às cegas nos intervalos das aulas e na rua, até chegar ao elevador e os pôr de volta. Depois, contava os mosaicos brancos que separavam os pisos até ao 6.º andar, com as duas mãos fazendo pressão contra o cimento atrasando o ritmo da subida, provavelmente provocando várias avarias. Ou talvez fosse só imaginação. Devia ter quase 13 anos, quando as gémeas chegaram de Sandomil, a aldeia da Guarda onde vivia uma avó que iam visitar quase todas as férias, encantadas com os magalas de volta à terra. E lá fomos rondar o quartel, tentando abordar os ditos para fazer novos amigos. Não tivemos mais sucesso do que uns quantos encontros no café do centro comercial com um indivíduo que vivia ali perto e que, por algum motivo, achou piada a três muito risonhas púberes raparigas. Mas foi o suficiente para a porteira da minha avó, que era uma grande cusca disfarçada de agente do bem, ir a passar e ter visto a cena das meninas em volta dos garanhões, decidindo chibar-se imediatamente: — Sabia que a sua neta anda metida com soldados?
Não me lembro de grandes tumultos face ao confronto com a minha avó. Depois da sua própria infância de gavetas devassadas, a minha mãe acreditava no direito à privacidade na coexistência familiar. Ter-me-á falado de responsabilidade e parcialmente ignorado a denúncia da porteira, que se chamava Adélia. O que é facto é que uns tempos depois, não sei explicar se por vingança ou incontrolável vontade de transgressão, entrei no elevador direito e baixei as cuecas, pús-me de cócoras e mijei tudo que tinha na bexiga no pesado tapete castanho que a Adélia teve que carregar molhado para lavar do nojo e do cheiro. Claro que ela ficou furiosa e foi pedir contas à minha avó, argumentando que não podia ter sido mais ninguém àquela hora senão eu, não havia outras pré-adolescentes insubordinadas no prédio e nenhum estranho entraria ali para isso. Acho que ninguém acreditou mesmo que eu fosse capaz de tamanha selvajaria.
Terá sido mais ou menos nesta altura que sonhei com o elevador esquerdo. Aquele que, rodando uma chave, descia até às duas garagens subterrâneas. Foi para lá delas que eu sonhei pela primeira vez ter descido sem conseguir parar. Havia um andar por baixo da segunda garagem, outro de seguida e assim sucessivamente, aumentando o ritmo da descida já sem se vislumbrar nada que não um infindável vácuo sem respirar até acordar querendo gritar. Muito tempo antes, quando os meus pais ainda viviam no andar abaixo do da minha avó, acordara a meio da noite com o prédio em peso tentando salvar o que pudesse de um dilúvio que causaria uma inundação demolidora. Ainda recordo a massa de água cinzenta chegando à rampa de saída da primeira garagem para a rua, o pânico nos olhos dos adultos e a minha constatação quase divertida dos carros debaixo d’água.
Alguns anos mais tarde, repetidas vezes sonhando com a vertiginosa descida ao nada, desta feita nos elevadores da torre suburbana de 15 andares onde vivia, com caves em vez de garagens e botões redondos que se iam iluminando um por um ao longo da tormenta, do 0 ao -1, -2, -20, -30, -70 e por aí fora até acordar, ocorreu-me, de repente, a provável inspiração na origem da formulação de terror no contexto da queda: o buraco aberto no chão da caverna da Cuca, por onde desapareceu Emília aos berros - em queda livre - num episódio do Sítio do Picapau Amarelo. Lembrei-me de mim com medo da Cuca, algures nos anos 80 a ver televisão no conforto da salinha de estar a que todos continuámos a chamar escritório, mesmo décadas depois de o meu avô ter morrido e de nunca mais ter sido usado como tal. Chegou a ser o meu quarto por largas temporadas, um pouco antes da iniciação aos perigos das torres com os seus parapeitos nas alturas e dezenas de patamares por calcorrear escadas acima e abaixo, quando os elevadores não funcionavam.
Quando já dormia sempre no 10.° andar, comecei também a sonhar com mais recompensadores vôos e levitações que, felizmente, ainda se me vão surgindo e iluminando, esporadicamente, quando durmo. Esses sonhos também podiam fazer lembrar os momentos mais poéticos da adaptação em televisão (na mesma série da Rede Globo de 1977-86) da obra de literatura fantástica de Monteiro Lobato (1882-1948), precursor da literatura infantil na América Latina.
Sobre o sonho da queda, queria ainda explicar que parece que a Cuca era uma velha com cabeça de abóbora, um fantasma ou um dragão, reaparecendo, depois de dormir uma só vez após cada sete anos em claro, para raptar crianças desobedientes que não quisessem ir para a cama dormir. A personagem, resgatada da cultura popular brasileira, provirá da figura Coca (cabeça, crânio) do folclore galaico-português e terá chegado ao Brasil nos séculos da colonização portuguesa. Na série de aventuras encarnava um jacaré de corpo inteiro, unhas afiadas e voz aterradora. Era um imaginário que convidava ao fruir de emoções e ao exercício do pensamento livre, criativo e crítico. Os protagonistas, que eram a avó, a matriarca da fazenda, com os seus netos, empregados e vizinhos, entrelaçavam as suas vidas quotidianas com as dos elementos mágicos e vários momentos de suspensão, entre eles o medo colectivo da eminente aparência da bruxa. E todos colocavam muitas perguntas. Havia um visconde-cientista feito de milho e uma boneca de trapos rebelde e insolente, a Emília, que era a minha preferida. O ambiente rural e os cenários, em parte hiper realistas, eram enriquecidos por uma subjectividade poética estrutural, bem como por ensinamentos didáticos sobre a flora, a fauna e uma certa ética alicerçada no respeito por todos os seres integrantes da comunidade (constrangimentos da escala de valores civilizacionais conformes à época e lugar aqui todavia reproduzidos). Os meios técnicos e tecnológicos, mais ou menos rudimentares, contribuem ainda aos olhos de hoje para uma qualidade artístico-pedagógica rara, quer na manutenção da riqueza de personagens e enredos da obra literária original, espelhada nos diálogos e jogo dos actores, quer nas soluções audio-visuais encontradas, com um leque de expressão dramatúrgica vasto, indo do melodrama à fábula e recorrendo a máscaras de corpo inteiro, diferentes tipos de ilustração e música original.
Foi o tema musical da Cuca, conservado no meu inconsciente até ao momento de repescagem na memória afectiva, que finalmente me transportou à clara percepção da sensação mista de pavor e fascínio que o perigo então me provocava -, revelando-se assim uma espécie de solução para a obstrução emocional que possa ter derivado de vivências espelhadas nestes sonhos. É uma música fabulosa.
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