A literacia e os inestimáveis irrelevantes
Desde que, muito notoriamente, nos foi atribuída na Alemanha, aos artistas e a todos aqueles que trabalham em tempos livres no geral e nas áreas da cultura, restauração, hotelaria e desporto, em particular, a designação de irrelevantes para o sistema [neoliberal], que me regozijo por ensinar português aos filhos daqueles a quem não foi. Longe de mim questionar a necessidade de isolamento social, mas não deixa de me revolver as entranhas, a visão diária dos transportes públicos e lojas à pinha, enquanto que os museus, cinemas e teatros se enchem de pó e teias de aranha. Claro que aqui, os artistas e outros trabalhadores independentes ou contratados destas áreas são, de uma ou outra forma, subsidiados pelo governo para ficarem em casa e não atrapalharem a continuada lufa-lufa dos restantes, pelo que não me fica muito bem queixar-me. Não estorvemos os mercados e concentremo-nos na nossa parca, mas ainda assim alguma, utilidade para com os restantes e mais relevantes membros da comunidade.
O Max, a Lara e o Paulo, a quem a sua avó brasileira chama Paulinho, são crianças alemãs não bilíngues, sem pouco ou nenhum contacto prévio com a língua e cultura luso-brasileiras, que, para sua sorte ou azar (ou, mais objectivamente, devido à qualidade mais duvidosa das escolas públicas multiculturais da sua área de residência), se viram, subitamente, perdidas no tormento da alfabetização simultânea: ao mesmo tempo que, pela primeiríssima vez, aprendem a reconhecer e a juntar vogais e consoantes, oral e graficamente - vulgo aprender a ler e escrever na língua materna -, confrontam-se com o mesmíssimo processo em imersão total numa língua incompreensível. Foi assim que, já perto de completar 8 anos de idade, conheci o Max, incapaz de produzir os resultados esperados e ainda em estado de pura perplexidade perante a tarefa exigida. Hoje tem 14 anos e discutimos em português as aspas dos descobrimentos - por fim denominados "a expansão marítima portuguesa" - ou a qualidade da escolaridade obrigatória que, neste país, faz grassar teóricos da conspiração como se de cogumelos da floresta no início do Inverno se tratasse. Longe vão os dias em que eu ainda o ia buscar à escola e em que, entre passeios, receitas da doçaria mais ou menos tradicional, sopas e refogados, bem como uma ou outra coreografia de um rap traduzido ou cantorias de música original do festival da canção, ele lá foi entrando em contacto com as bases da língua e da cultura portuguesas. Com as suas irmãs mais novas, das quais só a Lara continua na escola portuguesa-alemã, comecei ainda mais ludicamente a iniciação, aos 6 anos de idade, na alfabetização em modos lusos: treinámos os números e as letras a saltar ao elástico e a passar a bola, fizemos teatro com figurinos, maquilhagem, mímica e texto, experimentámos acrobacias e comemos muitas bolachas e tartes. Chegámos a cozinhar caril de grão com arroz, esparguete com molho de tomate e malaguetas colhidas em Évora, ervilhada com ovos escalfados e bacalhau à braz para os pais, que lhe chamaram um figo. Todos prepararam números de dança, música e poesia para apresentar à família no fim do primeiro período e do ano lectivo. Mas não deixámos de fazer cópias e ditados, bem como de usar o dicionário com frequência, que, para além do formato digital, lhes ensinei a usar desde o início. Eu acredito em ortografia, assim como no ensino através de e para a arte e o pensamento livre.
O Paulinho, que há pouco foi para a escola, em plena pandemia e acabado de fazer 6 anos, sem qualquer aprendizagem prévia do alfabeto, tem diante de si uma ainda mais árdua tarefa. É-lhe exigido, de repente, que se sente quieto e atento à mesa por horas a fio, pronto para decorar e papaguear vocábulos estranhos como gente grande. Na maior parte das vezes sem que lhe seja sequer possível perceber o enunciado do que lhe é solicitado e, parece-me a mim, sem que o agente da solicitação se aperceba do bafiento estilo de ensino a fazer lembrar um colégio católico de uma qualquer colónia portuguesa dos anos 50. Admoestações físicas à parte, naturalmente.
O sucesso da literacia não reside apenas no progressivo adquirir de ferramentas que permitam a manipulação puramente mecânica da fonética e da sintaxe. A linguagem forma o mundo e se é um mundo em franco desenvolvimento humano, num eco-sistema saudável, que queremos para os nosssos filhos - ou os dos outros - há que nos começar a preocupar mais seriamente com a semântica lato sensu desde o primeiro momento da alfabetização, o que acredito só ser possível através de uma educação anti-autoritária, mas quer com regras claras de interacção e co-responsabilidade, quer com espaço para a manifestação de várias vertentes do espírito. Este tipo de educação não dispensa visitas frequentes e nas comunidades aos estabelecimentos de cultura e lazer, até ver encerrados por ordem governamental, ainda que, em Berlim pelo menos e, ao contrário de muitos outros locais de trabalho, transporte e consumo, não se tenham neles verificado quaisquer infeccções por Covid-19. Foram estes estabelecimentos, pelo contrário, nomeadamente teatros, que se viram imediatamente obrigados a investir em medidas rigorosas de prevenção contra a difusão da doença, que agora se encontram reduzidos ao papel de figurantes irrelevantes em passivo compasso de espera por mais saudáveis tempos.
Em favor da higiene mental de todos e do futuro próximo do planeta, espero que esses mais saudáveis tempos não tardem. Antes que o desapego a tudo que não sejam bens de consumo imediato, bem mais depressa do que julgamos ser possível, torne obsoleto muito do que realmente importa ao progresso das sociedades e à felicidade e bem estar dos seus membros.
“CARTILHA MATERNAL ou ARTE DE LEITURA”, João de Deus, 1876
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