Mãos na massa

 «Meter a mão na massa.» Segundo os "Novos Dicionários de Expressões Idiomáticas", de António Nogueira Santos, Edições João Sá da Costa, Lisboa, 1997, significa «intervir em tarefa, debate, polémica, etc.»


 

Dedos por todo o lado fizeram-me hoje lembrar um livro de infância, uma estória, se a memória não me falha e, certamente, fá-lo-á sempre um pouco, ou muitíssimo, não importa, que talvez se chamasse “os dez dedinhos” de uma pobre mulher cujo nome não me recordo mesmo. Eram os dedos que a ajudavam a fazer a lida da casa, mas só os das mãos: os dos pés não se mencionavam. Mas isso só descobríamos no fim, quem eram os dez ajudantes da senhora. Talvez o título fosse “os dez anõezinhos”? Da D. Adelaide? Adelaide ela não era, a minha avó é que tinha uma amiga Adelaide com quem me cheguei a escrever: a certa altura estava num lar e mandava-me cartas. A Lailai adorava crianças; não sei se era ela ou a minha avó quem o dizia, se apenas uma coisa que eu sabia. O livro era o meu pai quem mo lia, tê-lo-á feito umas quantas vezes pelo menos, não me lembro de o ter lido eu. A capa era preta e verde com o desenho de uma figura feminina, de cabeça para baixo, a olhar as próprias mãos como que segurando um instrumento invisível, talvez uma corneta ou uma flauta; os traços eram frios e de contornos misteriosos, creio que em aguarela. Talvez os desenhos fossem de António Sérgio, desconheço porque trago este nome comigo. 

Que coisas trazemos das que nos calham e quais dessas acolhemos, parece-me ter sido disto que se tratou a tarde de retorno ao trabalho com a minha mais nova explicanda, depois de mais uma fase de quarentena sem jardim de infância. A Maliyah, que é alemã não-bilingue, tem cinco anos acabados de fazer e está a aprender em português o nome das cores, das coisas, dos animais, a reconhecer números e letras, a contar e a juntar vogais; não há nada melhor, que eu saiba, do que os dedos todos para meter a mão na massa.
        
                         

Encontrei a capa do livro a pesquisar na net! O texto é de António Sérgio, as ilustrações de Filipe de Abreu: a adaptação de um conto tradicional que envolvia violência doméstica e uma mulher desesperada que recorria a uma vizinha para dela escapar. A outra mulher, mais velha, suponho, procura instruí-la no cumprimento de todas as tarefas do lar e da família, dizendo-lhe que seria ajudada por dez anõezinhos sem se dar conta. No final, dias passados na árdua execução a solo, o seu homem parece ter acalmado. A mulher agradece a ajuda à sábia vizinha, perguntando-lhe, no entanto, pelos tais anões tão afeitos a trabalhos forçados. A vizinha chama-lhe tola e diz-lhe que olhe para os dez dedos que tem nas mãos, eles mesmos os actores de todo o esforço capaz de apaziguar a fúria do marido, pela qual a aparente incapacidade da esposa de alimentar, arrumar e lavar seria responsável. Chama-se “Os Dez Anõezinhos da Tia Verde-Água”, tanto o conto tradicional, como a versão de António Sérgio, e não é por extraordinária capacidade de memória que me recordei do nome do autor, mas porque na Primavera passada me dediquei a separar livros de infância a oferecer à minha afilhada e a levar comigo para um dia ver melhor; esta obra parou-se-me nas mãos e a coleção foi parar aos caixotes do resto da vida. Não sei quem transformou o papel das sovas e do seu perpetrador numa solitária depressão, se eu mesma, o meu pai ou o autor do livro. Na minha avivada memória do drama não reside papão, é uma apatia por conta própria que vai deixando esfumar os passivos dias entre portas. 

Se voltasse agora ao conto, não apagaria o sofrimento ou o patriarca. Mas tentaria revelar uma vizinha mais prestável através de uma contracena activa, que assentasse no empoderamento dos dedinhos do corpo todo desta mulher tão triste, mas capaz de esboçar um pedido de ajuda para fazer da vida sua própria criação. Talvez ao longo de uma viagem, igualmente, difícil mas comunitária e, verdadeiramente, redentória. Uma viagem pela floresta de outros caminhos, aqueles que se apoiam na auto-determinação, na prestação de cuidados ao próximo e nas leis e mecanismos de protecção da vítima, que já foram criados e que devemos preservar e desenvolver: a isto se chama, hoje em dia, sororidade. Quanto aos anões, esses passariam a amigos. Intitular-se-ia “Os 20 Amiguinhos da Tia Verde-Água”, e de tal cor e precioso líquido no destino das protagonistas, certamente, não me esqueceria.
         



Comments

Popular Posts