Satélites
O meu aluno Max já me tinha visitado, em Agosto passado, uma vez sozinho e outra vez com a mãe. Primeiro para, finalmente, conhecer o nosso jardim e estrear conosco um tanque comunal (tratava-se de uma banheira abandonada na rua que um vizinho recolheu e que juntos transformámos), depois para participar num dia de actividades abertas ao público. Num dia fizemos grelhados e fartámo-nos de rir a comer bolo de limão dentro de água, noutro jogámos ao "rei manda", em português, com coroas feitas de cartolina. Entre os arbustos, assistimos à leitura, em alemão, de um excerto de um romance em desenvolvimento, e, depois, na pedra do pátio, debaixo das janelas, a uma roda de capoeira de Angola. Hoje ele veio, pela primeira vez em 8 anos, para uma explicação de português que não teria lugar em domicílio próprio. Chegou, directamente da escola, com a mochila carregada demais e uma ligeira falta de vontade, mas também alguma curiosidade, apesar de ainda estarmos em Fevereiro.
A falta de vontade prendia-se com o tema da lição. Às vezes estudamos história ou ética, quase sempre gramática. Para geografia e biologia ele já não precisa de ajuda, ainda que estas disciplinas também sejam leccionadas neste idioma que sempre lhe será estranho. É, precisamente, de conversar sobre temas humanistas, bem como do fruir de materiais de apoio alternativos, como músicas ou filmes, que ele mais gosta nas explicações, mas nem sempre as obras literárias abordadas na escola lhe provocam qualquer interesse, como é agora o caso de "A Lua de Joana" de Maria Teresa Maia Gonzalez. A professora terá escolhido a obra juvenil para substituir todo o capítulo do manual escolar sobre texto dramático, isto é, um conjunto de excertos de vários autos de Gil Vicente - tudo aquilo que, nesta disciplina e neste programa, nesta escola, se ensina sobre teatro a adolescentes. Há uma página no final do capítulo que define teatro não só como texto dramático, com falas, que podem ser em forma de monólogo ou diálogo, com apartes e didascálias, mas também enquanto espectáculo em si, único e irrepetível, bem como lugar onde se pode assistir ao mesmo (só o anfiteatro grego ao ar livre e as salas de espectáculo são referidos; eu disse-lhe que o teatro contemporâneo se pode passar em todo o tipo de espaços com público, por exempo transportes públicos ou o meu pátio). Voltando à obra juvenil e, especificamente, ao tema tal qual descrito na contra-capa desta edição, a dependência química e questões que esta levanta, passadas umas quantas páginas de leitura individual e de trabalho de grupo, poucas, o rapaz ainda não se tinha apercebido do seu teor. O livro tratar-se-ia, segundo o próprio, de um diário muito deprimente sobre a morte da amiga da personagem principal.
Falámos primeiro sobre o título, ele já sabia que a lua na estória é um baloiço particular, metáfora de espaço próprio para pensar e sentir, mas não sabia que a lua é um satélite natural (e eu tinha-me esquecido que se define também como planeta, precisamente mais pequeno, que orbita em torno de um maior). Lemos, então, a dedicatória e continuámos com algumas entradas do diário, que na verdade são cartas para alguém que já não existe, concentrando-nos em quem faz o quê como e onde, para começar a caracterizar as personagens e a identificar os acontecimentos de arranque da trama para além do luto, a tal morte da melhor amiga e as reacções dos familiares através da perspectiva da narradora. Parámos no momento de descoberta de uma colecção da falecida, agora herdada pela nossa protagonista, que esta desconhecia por completo, dando assim azo a uma conversa sobre amizade e do que é normal ou expectável partilhar neste contexto.
Depois de uma pausa para desentorpecer o corpo, parámos com a análise do texto e dedicámo-nos antes ao que eu chamo pesquisa de pontos de interesse no horizonte do explicando: este texto não é teatro, mas assemelha-se a um monólogo, poderia ser encenado com recurso a video, música e luz ou quaisquer outros meios que não só a palavra para expressar estados de alma e contar a estória. Trata-se de um conto de advertência, literatura de prevenção, em inglês a cautionary tale ou, se quisermos, uma história pedagógica com moral. Se o Max estivesse numa escola alemã, se fosse da geração dos seus pais e se estes não tivessem vivido na Alemanha de leste, estaria agora, certamente, a ler "Os Filhos da Droga" ou, no original, "Wir Kinder Vom Banhof Zoo", obra mundialmente famosa que constitui o mesmo tipo de literatura, se bem que se tratando de um relato e não de ficção, nela se abordando, simultânea e indirectamente, a história de Berlim. Como não lhe posso mostrar ainda o filme (aconselhei-o para daqui a uns anos), mostrei-lhe a minha edição de antiquário, mais que usada e com notas por todo o lado, foi o livro que escolhi para começar a ler em alemão quando aqui cheguei. Ele pediu para levar, mas não cabia na mochila. Para já tem as cartas da Joana para ir lendo no metro, foi o que lhe disse e ele achou boa ideia. Para a semana mostro-lhe o "Heroes" do David Bowie para abrir as hostilidades… quando avançar na leitura ouvimos Rádio Macau.
Poder-se-ia pensar que quem, fundamentalmente, joga videogames e ouve música pop da Alexa não terá qualquer interesse em rock experimental dos anos 70, cinema de autor ou dramatização de textos numa língua estrangeira, o que, neste e em muitos outros casos, não é verdade de todo. Acho que ainda abordaremos Gil Vicente e talvez ensaiemos a nossa própria produção multi-disciplinar a apresentar ao público, não é má ideia para mais um projecto de Verão no pátio. Se mais alguns jovens amigos se interessassem, talvez pudéssemos formar um grupo de teatro da estação: por todo o lado, quando olho, me parecem ver necessidades sociais óbvias por colmatar.
Comments
Post a Comment