Sobressaltos de veludo
O dia, em Kiev, começou com sirenes. Para mim, em Berlim, não aconteceu. Percebi hoje o apelo de todas as coisas virtuais, acho que nunca me tinha acontecido. Levantei-me a mastigar a palavra declinar. Na Ucrânia, as pessoas corriam a alinhar-se em filas sem dormir, correndo a bens essenciais e gasolina, eu escrevia uma palavra e virava-me para o outro lado com o gato (tinha passado a noite a ver documentários sobre fraudes talvez heróicas para os millenials). Os militares russos faziam ataques cirúrgicos, os ucranianos fugiam rumo a ocidente ou aglomeravam-se em estações de metro. Na minha cama, um tumulto gelado guiava-me numa carrinha em tournée de que não fazia parte: quando tentei saltar estava presa por um cinto; o condutor, contrafeito, um dos directores de uma companhia para a qual não trabalho há uns tempos, viu-se forçado a parar; os meus ex-colegas e amigos saíram para uma pausa, depositando tartarugas já crescidas numa poça ternurenta (parece-me ter causado a revelação de um segredo). As horas foram passando, a minha perspiração degladiava-se ainda com símbolos de rejeição e movimentações infindáveis: sozinha com tantos outros percorrendo cidades em que vivi há muitos anos, a pé ou de bicicleta, nas traseiras dos prédios, nos bastidores de escritórios e consultórios, escada íngreme abaixo, caminhos de terra afora. Há mais frases impressas que quero reter: estou a escrever um poema, resta-me um único recorte nas mãos, não sei em que língua, que carrego com urgência. Esvaiu-se-me sem que a pudesse registar, a essa última palavra.
Mesmo antes de acordar, saí de tudo aquilo a voar de braços abertos, cruzando-me com a Penelope Cruz e a filha no céu, sobre os telhados, numa espécie de motorola vintage. Ela pergunta-me se sou um pássaro, eu respondo-lhe que sou uma borboleta com asas mais fortes.
Abro a janela, desfaço a cama, lavo-me, desmarco um encontro, faço café e sento-me a ver o telejornal das 8. O Putin balbucia razões, serão essas as palavras da História. Está quente cá dentro, escuro lá fora. O café está aguado, mas nada parece desabar. Vou lavar pijamas.
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