A montanha
Bilhetes antigos, sejam de idas ao cinema, teatro, a concertos ou, menos frequentemente, museus, são coisas que me emocionam. Costumava ter uma batelada deles, numa caixa forrada a veludo vermelho, no meu quarto de adolescente, cujo recheio foi, recentemente, convertido em caixotes de mudança. Quando mudamos de casa muitas vezes, começamos a criar algum desconforto relativo à quantidade de memorabília que vamos adquirindo ao longo da vida para nos lembrarmos melhor de como nos vamos tornando quem somos. Quando alguém nos morre, há todo um abismo de gavetas, prateleiras, baús e arrecadações a considerar, com ou sem prazo de esvaziamento, a sós ou com responsabilidade partilhada, que acaba, irremediavelmente, por se transformar em aversão ao colecionismo. A mim morreram-me três pessoas cujas casas tive que esvaziar, de uma só vez ou ao longo de anos. Quando chegou a vez de me confrontar com as minhas próprias recordações, não sobrava muita capacidade de apreço pelos artefactos, mas antes uma agonia desassombrada perante cada desenho de infância, carta ou objectozinho inútil, mas tão carregado ainda das emoções originais que a sua existência despertara. É a triagem que mais pesa, porque obriga à análise atenta e, desesperadamente, lenta: diário, relatório, roupa, fotografia, livro; por fim apetece não querer absolutamente mais nada e recomeçar no vazio, como se isso alguma vez fosse possível.
A minha mãe, cujos pais regressaram a Portugal de avião com as coisas num barco, depois da guerra colonial ter começado, mas antes do 25 de Abril, nunca perdoou à sua mãe ter trazido tudo, dizia ela, menos os seus livros de criança. Houve muitas pessoas que não conseguiram trazer nada ou que acabaram por perder tudo que, de alguma forma, chegou ao porto de Lisboa, mas não aos destinatários. A minha mãe ensinou-me a guardar tudo como se de uma relíquia eterna se tratasse e agora não sei se já lhe perdoei nunca ter tratado de nada que tivesse que ver com o fim. Sei que estou grata à minha avó por ter deixado tudo pronto a considerar rapidamente.
Agora que planeio deixar Berlim um dia, apercebo-me da minha própria tendência em continuar acumulando memórias, mas sei que, também aqui, terei que tomar decisões irreversíveis no que toca a abandonar visões do passado. Arrependo-me um pouco de ter deitado fora tantas cartas, autógrafos e uma colecção inteira de postais de cinema; esta, especificamente, era uma colecção imensa que me reportava àqueles momentos irrepetíveis e inspiradores, ora com a minha mãe, ora com o meu namorado da altura, ainda grande amigo, nas salas dos cinemas King e Quarteto, que também já não existem. Por isso guardo agora cada bilhete com tamanha emoção: não sei por quanto tempo poderá constituir testemunho das minhas vivências nesta cidade de que sempre terei saudades, mesmo enquanto ainda aqui vivo mas já não inspiro por inteiro.
Ontem fui ver uma peça de teatro de que não gostei nada. O seu bilhete, junto de outros que me transportam mais à fruição em si de alguma expressão artística, recordar-me-á da minha alegria ao ver uma amiga de novo no palco e da nossa posterior comunhão entre pares e bebidas no foyer do teatro. Talvez pela primeira vez neste contexto, contive-me em oferecer a sinceridade brutal das minhas opiniões à minha amiga e limitei-me a apontar pequenos reparos positivos com que a pude congratular. É uma forma de aprender melhor a deixar de lado o que já não serve, para além de tentar ir ao encontro do que precisam, de facto, aqueles que amamos (incluindo nós mesmos); se a esta boa amiga interessar saber as minhas opiniões mais críticas sobre o espectáculo que tem em cena, certamente encontrará oportunidade de as auscultar quando lhe aprouver. Não há espaço para tudo, quer nos sítios que habitamos, quer no que decidimos levar conosco. O que podemos guardar é um privilégio, mas também pode ser um fardo.
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