Cadelinhas
Quando tínhamos três meses de férias de verão e os nossos pais ainda sonhavam juntos, passávamos, quase sempre, grande parte delas no Algarve. Primeiro no parque de campismo do Caliço, junto a Vila Nova de Cacela, que era uma vila a sério todo o ano, com um mercado autêntico e não só para inglês ver, umas poucas centenas de moradores e muito espaço livre a percorrer em estradas de terra batida até à praia; mais tarde, numa casinha alugada em Cabanas de Tavira. Tínhamos um barquito a motor de 15 cavalos, que se chamava Passaroco, e movíamo-nos, sobretudo, entre a Ria Formosa, a cidade e a ilha. Lá ficávamos, então, também noutras temporadas, às vezes semanas a fio, já o nosso pai tinha começado a trabalhar cá em baixo e só subia a Lisboa aos fins-de-semana. Mas era no verão, nas praias da Manta Rota e da Fábrica, que eu e o meu irmão nos deliciávamos a devorar cadelinhas nas esplanadas com vista para o mar e para a ria. Eles saboreando ameijoas, ostras, camarão, sapateira e outros quejandos; nós, incapazes de comer qualquer animal que se não apresentasse em filete, com a excepção talvez única do frango de churrasco ou com limão no forno, contentava-nos bitoque atrás de bitoque, sem nunca suspeitar do que perdíamos, nem do paraíso em que fomos crescendo. A não ser quando havia cadelinhas.
Há pouco mais de um ano, voltei a sentar-me na esplanada do restaurante da praia da Fábrica, desta feita com o meu companheiro faz 25 anos. Quando nos trouxeram as cadelinhas, sabiam ao bom que era o que não foi terrível (e até era bastante). Esta semana voltámos a comprar cadelinhas, mas no supermercado para cozinhar em casa, que já não sou emigrante, nem da classe média. Agora vão as conchas das defuntas cadelinhas, em ínfimos pedacinhos, adubar a terra seca e pobre que nos espera e ao milagre da revitalização, porque, já sabíamos e devemos recordar, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma*. Minerais, memórias, no fundo, vai tudo dar ao mesmo.
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