Os patinhos
O dia tinha começado torto, abrindo a janela ao som do martelo pneumático. Lá em baixo a derradeira vaga de destruição das plantas, aquelas cinco vezes sobreviventes. No pátio todas as ausências. Saímos à rua com a impotência na garganta, ele cerrando a raiva, eu soluçando o vómito.
Depois, como combinado, pegámos num carro e atravessámos as obras a ouvir Flux FM rumo ao sudoeste. Partimos em Alexander Platz, pelo Lust Garten, toda a Unten der Linden até ao Brandenburger Tor. Regierungsviertel, Tiergarten, Siegesäule, furando até à Theodor-Heuss-Platz. Já em silêncio, descemos o Havelchausse, devagarinho; no banco de trás, as nossas amigas de Odessa sussurravam, docemente. Na praia, os patinhos mordiscaram-nos os pés, as cenouras e os mirtilos. Bebemos gim tónico, os barcos passaram. Houve quem nadasse e quem bebesse vodka, eu quis tirar fotografias. Os bolos russos era só mel, o húmus foi devidamente devorado. Falámos demasiado alto, demos gargalhadas e abraços na água e junto às árvores. No final, a sós, passámos ao largo do Zoo e do Europa-Center, Potsdamer Platz, Gleisdreieck Park e Hallesches Tor, até baterem as 20:57 e encontrarmos um lugar para estacionar.
Despedimo-nos juntos esta única vez. A última na Grünewald, onde primeiro fomos inspirar fundo. Foi no verão de há quinze anos, quando dormíamos no chão, num apartamento vazio em Alt Moabit, com as roupas em sacos do lixo, dvds e livros da biblioteca, um sofá branco de napa apanhado à esquina. Procurávamos casa no ciber café, entregávamos currículos em bares e restaurantes. Em repartições, consultórios e instituições, tentávamos balbuciar algum alemão burocrático. Numa das primeiras semanas, estivemos na Straße des 17. Juni a tentar ver o Obama a discursar. Também nessa altura, tanto a incerteza quanto a busca incessante de liberdade constituíam uma imensa parte dos sonhos e pesadelos que nos vieram a sustentar.
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