Só mais cinco minutos

Tanto quanto eu me lembro, esteve desde sempre a gaivota preta no meu horizonte, por cima da cama, no tecto. Deve ter perto de quarenta anos; desaparecida largos anos num saco para desembaraçar os fios de côco e arranjar novos, mas, de resto, sempre lá. Foram precisamente os anos da sua ausência, os da adolescência e início da vida adulta, em que mais frequentemente sonhei com a levitação e o voo. Mais tarde também com a estrada aberta. O primeiro levantar voo ocorreu nos três degraus das escadinhas do pátio do externato de betinhos que frequentei  dos 3 anos à 4.a classe... já eu andava no 10.o ano, numa escola pública dos subúrbios ao fim da rua. Lembro-me perfeitamente: um movimento suave de suspensão, quase sem querer. A minha surpresa, estupefacção seguida de elevada incredulidade, maravilha, maravilha, ainda antes da orgânica tentativa de controlar o movimento de crescente distância do solo - esticando os membros e movendo a cabeça para dirigir.  Pairar. Descer e subir, ir alternando com poder e propriedade a partir dos pés, uma sensação plena de liberdade ilimitada. Depois o voo em distância somando consistências das paisagens e lugares particulares, em variada diversidade, de cada vez uma nova combinação de rostos e contactos, um enquandramento singular, olhando cá de cima lá para baixo, aprendendo a planar. Expontâneo-rotineiramente. Uma delícia.

Quando o sonho começou por se repetir, para meu prazer absoluto, resolvi perguntar à professora de filosofia, que há pouco nos tinha proposto a letra de Nasce Selvagem enquanto tema de dissertação numa aula, que dizia a disciplina do tema em seus dicionários (não havia ainda internet em casa, na altura, e muito menos móvel. Para isso faltava ainda, pelo menos, uma década). Uma biblioteca especializada não estava à mão não indo a Lisboa ou a Loures; ter uma boa professora era valiosíssimo para qualquer curioso. Da solicitação surgiu o conceito de necessidade extrema de libertação, de um problema, prisão ou condicionante alheia. Satisfez-me a resposta às indagações existenciais que trazia à época, pareceu-me autêntica e justa, concordante com o meu estado de espírito e perspectivas de vida. Pelo que não voltei a questionar-me quanto à recorrência do sonho mais que agradável durante anos a fio, dando-me por satisfeita pela ocorrência e capacidade pessoal da sua memória.

Mas, como em muito do que se nos passa na vida, foram-se alterando as condições que, provavelmente, estiveram na origem do sonho primordial e suas réplicas. Mudei de cidade(s) e de estado de espírito geral diversas vezes, bem como de clima e geografia física: nos sonhos materializam-se agora caminhos visíveis no chão em diferentes altitudes. Talvez tenha perdido amarras e lançado âncoras, pelo que também os sonhos se foram transformando noutras coisas em que reflectir e com que criar. Aos fabulosos voo e planagem, cada vez mais esporádicos, veio somar-se há já vários anos a minha mais arriscada condução ao volante, nas estradas de terra e de betão, com mais ou menos atribulações - enquanto durmo, apenas, mas com alguma frequência. A minha capacidade de conduzir nem sempre é posta em causa, muitas vezes domino toda a técnica envolvida; é a manifestação de uma tácita, mas evidente renovada sensação de perigo e transgressão que me perturba. É uma acção oculta. Na verdade, eu tenho é que tirar a carta. Não basta dominar o sistema de navegação e decifrar a direcção a cada instante. 

Vem agora outra ciência social, a psicologia, dizer que não se trata de libertação, mas de emoção. Eu chamar-lhe-ia escapismo do mais fascinante. Seja como for... estranhos desígnios. Não me queixo da sua fruição em tempos de espera ou tomada de percepção - depende sempre da perspectiva. Mas, de toda a forma, desígnios de consciencialização necessários à transformação.


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