Quartos sem vista
Foi no Alentejo, aonde mais tarde voltei para estudar na Universidade, que percebi o que queria mesmo dizer mobilidade social - ou ausência dela. Eu tinha 13 anos, mas fingia ter 15, conselho da minha mais recente amiga mais velha, que me convidara a passar uns dias de férias em Alter do Chão. Trata-se de uma vila no interior do distrito de Portalegre, famosa pelos cavalos de raça lusitana e famílias cujos nomes revelam sem pudor a origem social. Eu conhecia as fronteiras entre as diferentes tribos urbanas da escola secundária que ainda frequentava em Lisboa, apesar do meu coração já bater mais forte pelo subúrbio a norte em que vivia; sabia do ridículo a que um adolescente se poderia expor ao tentar ultrapassá-las por via de uma peça de roupa comprada no sítio errado ou frequentando um local que não lhe estaria por insondáveis desígnios destinado. Mas nada me tinha preparado para a brutal transparência com que, naquela terra, a árvore genealógica e a morada identificavam, claramente e desde o berço, as pessoas de diferente estirpe ao longo de todas as gerações possíveis: passadas, presentes e futuras.
Os meus pais estavam muito perto de se separar, os tempos dentro de portas eram tumultuosos há demasiado tempo e a escola tinha-se tornado terreno de solidões várias: as minhas amigas gémeas iam ser colocadas noutra turma, mais bem comportada e melhor frequentada. Creio que as três juntas, que nos conhecíamos desde os 3 anos de idade e já tínhamos vivenciado todos os graus das relações femininas na infância de então - de melhores amigas a arqui-inimigas e depois todos os graus de volta à origem -, nos tínhamos tornado insuportáveis juntas e eu é que fui considerada a cabecilha da insubordinação. Ou talvez estivesse mesmo a perder o controlo. A minha outra amiga próxima, um pouco estranha como eu, com quem tinha andado alguns anos na dança-jazz e que também escrevia cartas, tinha agora um namorado e dizia que queria mudar de escola. Certo é que aquele súbito pedacinho de organização em forma de liberdade inesperada, debaixo do sol escaldante do punhado de casas alentejanas, me caiu bem. A minha amiga, recém chegada da casa do pai em Portalegre, a meio do ano lectivo, para viver com a mãe e o padrasto na grande cidade, esperava pelo recomeço do 10° ano numa escola chique ao pé das Amoreiras no ano seguinte e já conhecia os truques todos. Uma vez de volta à terra da avó chegado o Verão, a quem tinha dito que onde nós ficávamos mesmo bem instaladas era numa antiga garagem a que se acedia pelo jardim sem ter que entrar em casa, parecia-me saber subverter os códigos de comportamento que denunciavam a origem familiar e lugar de residência, bem como poder trocar as voltas a destinos há muito traçados pelos progenitores como que por magia, tal qual um verdadeiro Sonho de Uma Noite de Verão.
Em casa não fazíamos muito para além de engolir papas de sarrabulho e outros manjares, com algum custo, seguidos de sestas no fresquinho da nossa garagem transformada em quarto privado com serventia de casa de banho no jardim. Depois acordávamos satisfeitas nos colchões dispostos no chão de mosaico e escolhíamos a roupa para usar à tarde, de entre os montes em volta que partilhávamos irmãmente. A paisagem era árida e não havia quer praias, rio ou barragem em que assentar arraiais, ao contrário do que me haviam habituado as já remotas férias frequentes a acampar com os meus pais, quer cinema, teatro ou quaisquer actividades que não fossem frequentar algum, pouquito, comércio local com ar condicionado ou dar um salto à pequena piscina pública; estávamos sempre com pressa de chegar ao bar da vila onde ouvíamos música, bebíamos colas geladas ou sumo de maçã e podíamos jogar snooker ou tetris nas máquinas de jogos, confraternizando livremente com todos os outros miúdos descendentes da terra, residentes ou não, filhos de camponeses, donos de pequenos negócios nas redondezas, empregados de escritório na cidade ou aristocratas com botas de montar. Cada um no seu lugar, mas todos de férias. A mim bastava-me figurar nas estórias da minha amiga e até agradecia o papel; enquanto lisboeta de classe média flutuante, mais nova que todos os demais, não tinha outro préstimo que não corroborar ideias e emprestar entusiasmo. Ao entardecer trocávamos de roupa para jantar e, assim que podíamos, voltávamos ao bar, passeando-nos depois em matilha pelas ruas desertas; uma vez saltámos o muro da piscina e divertimo-nos à bruta, ainda me lembro da adrenalina que me corria nas veias no mergulho inicial. Outra vez fomos de carro ao Crato ver um concerto de bandas portuguesas. Também me lembro da iniciação à maquilhagem, decotes e transparências, bem como aos beijos e amassos ao luar. Na altura fiquei encantada com um marmanjo de guedelha comprida e namorada de sempre, aparentemente familiar afastada de quem a minha amiga não gostava. Ao fim das noites abríamos, sorrateiramente, o portão e atravessávamos o jardim num ápice para nos irmos deitar, na tarde seguinte começando tudo de novo. Não sei quanto tempo duraram essas férias, talvez uma semana, talvez várias. À distância parece-me que o Verão inteiro. Numa das madrugadas antes do derradeiro final, experimentei um cigarro depois do outro até os vomitar todos. Na tarde seguinte comprei um SG Ventil, o primeiro de milhares de maços de tabaco que fumaria até aos 40 anos de idade. Ao voltar a casa dei de caras com o meu pai a sair do elevador com o meu irmão mais novo, transportando compridas peças da mobília do nosso escritório no átrio de entrada do prédio, que se tornara pequeno demais. Desmanchei-me a rir. Depois passámos os meses seguintes a discutir mais que nunca. Eu tinha abandonado a dança e ele tinha descoberto a minha colecção de beatas mal cheirosas numa velha lata de cola no meu quarto; queria obrigar-me a nadar e levava-me às aulas de ténis todos os domingos de manhã. Às vezes proibia-me de sair de casa e encontrar amigos ali do bairro ou sequer de ir ao videoclube, ao mini-mercado ou à churrasqueira. Foram os últimos tempos que passámos juntos durante muitos anos.
As saudades das férias de Verão inauguraram as minhas insónias crónicas. Era Inverno e os meus pais já se tinham separado definitivamente. A minha amiga, que vivia na torre em frente, cuja construção bloqueara a vista para a ponte 25 de Abril ou para sítio algum pouco depois de ali termos começado a viver, abalara para a da avó, como dizem os alentejanos; eu ficara à espera de um convite para ir lá ter nas férias de Natal. As férias tinham começado, mas o convite nunca mais chegava. Passava horas fechada no meu quarto a escrever cartas e um diário sobre a minha miséria. Fumava cigarros à janela e ficava, apaticamente, deitada no colchão já sem cama, a ouvir música e a olhar para a primeira inscrição na parede, feita por ela à cabeceira: um desenho de estrelas em volta de uma lua a rebentar o betão a lápis de carvão. Sem nunca conseguir explicar à minha mãe da tristeza absoluta que a distância de Alter do Chão me causava. Sem poder parar para dormir. Às vezes ainda penso nisso, quando os padrões das minhas insónias se alteram e me trocam as voltas.
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