O frio dos Portugueses

Já estou quase, quase como o Sérgio Godinho a cantar o machismo instituído que nos corria nas veias em 1978, mas em 2021: a desejar o fim de tanto badalo. Passaram-se já muitos anos desde que a legislação passou a atribuir às mulheres o direito de votar e de determinar livremente sobre a sua própria vida, nomeadamente no que diz respeito ao direito de poder trabalhar ou deslocar-se ao estrangeiro sem autorização oficial do marido ou do pai. 42 desde a edição do álbum da música a que me refiro, um dos mais fabulosos da música de intervenção que se fez no país da altura. Mas o bolor ainda se entranha nas paredes mal isoladas das nossas pobres construções. A energia é demasiado cara em Portugal e a gente tem frio. Tem sido um Inverno duro no meu país, eu sinto-o do conforto do meu T0 com aquecimento central, aqui à distância de milhares de quilómetros, no centro da Europa.

Têm sido resilientes os meus compatriotas, com quem me preparo para ir votar nas Presidenciais, em tempos de pandemia. Numa república semi presidencialista não é o Presidente que legisla. Ainda assim, é significante o seu papel enquanto apoiante ou opositor do governo, representante de uma série de ideias e organizador de prioridades dos poderes de bastidor, sendo muito relevante a ideologia subjacente às suas posições e declarações em período de campanha eleitoral. Há candidatos ao mais alto cargo da nação, futuros ou futuras chefes maiores das forças armadas, que se revelam preocupados com o frio dos Portugueses. Com o frio, a fome, a desigualdade, a crise da habitação, da cultura, e agora sobretudo da saúde pública e do seu financiamento, nomeadamente no que diz respeito à responsabilidade dos privados no momento histórico que vivemos. Há outros preocupados com os que têm negócios com a saúde, a habitação ou a energia.  E depois há aquele senhor candidato, encarnando o papel de figura rocambolesca, mas convincente, na sua ávida necessidade de atenção, apelando à velhíssima banalidade do mal de imaginárias maiorias silenciosas que anseiem pelo regresso de um paizinho que as defenda dos estrangeiros e das pessoas esquisitas. Falo, claro, de André Ventura por causa do recente ataque à candidata Marisa Matias quando se referiu à cor do seu batom, lugar comum já insuportável da neo-misoginia ou anti-feminismo mais distraído de que fazem parte, neste contexto, quaisquer comentários ao estilo da roupa ou da maquilhagem, corte de cabelo, corpo, rosto, maneira de falar ou timbre da voz de mulheres em cargos de poder. O batom vermelho é um símbolo universal da emancipação feminina.

A lei é a lei e, felizmente, os portugueses têm sabido fazê-la evoluir. A passos um pouco mais largos, nos últimos tempos, no que toca a alguns direitos humanos; algumas vezes até como uns dos pioneiros neste continente, outras com décadas de atraso, como foi no caso da despenalização do aborto; atraso esse que obrigou inúmeras mulheres e adolescentes em sofrimento a passar a fronteira para evitar esquartejamentos de vão de escada - isto as que foram capazes de reunir dinheiro, coragem e autonomia para o fazer. Mas outra coisa muito diferente da lei é a sociedade civil. A escolaridade média, e até secundária, foi-se tornando obrigatória, mas a constituição não se ensina nas escolas e a instrução básica de carácter sexual e cívico são coisas do progresso ideológico dos últimos anos, contando ainda com muita resistência do conservadorismo e ignorância latentes numa larga camada da população ainda cheia de pruridos de ordem religioso-moralista sem fundamento que não a tradição. Essa resistência não só é bafienta, como também perigosa porque se opõe a avanços civilizacionais acabados de conquistar ou ainda por começar a discutir com urgência. Mais do que isso, reclama recuperar atrasos finalmente ultrapassados. Se não for levada a sério, esta resistência normalizará comportamentos que se julgavam em vias de extinção. Ao contrário do que se vai ouvindo, sempre que um fascista sem noção do ridículo se candidata a um cargo de poder, e têm sido bastantes, não é escolhendo a indiferença que se evita o perigo dele lá chegar. Se não se quiser consultar manuais oficiais de História, da Antiguidade ao século passado, já que estes são escritos pelos guardiões das vitórias, naturalmente cheios de omissões e opiniões parciais, mas ainda assim concretos nos factos - confiando nas ciências sociais -, basta passar os olhos pelos últimos anos e actualidade nos EUA, no Reino Unido ou no Brasil. Olhe-se também para a Polónia, para a Hungria e para todo o lado neste preciso instante, porque não há casos isolados na aldeia global e Portugal não será excepção, pese embora a memória ainda relativamente recente da revolução da liberdade, esta esvair-se-à mais depressa do que pensamos. Em breve haverá quem diga que nunca houve uma ditadura, basta morrer o último que lhe sobreviveu. E milhares de idiotas, ignorantes e indiferentes a partilhar a falsa notícia ou a fazer orelhas moucas.

Infelizmente não faltam exemplos das consequências da apatia cívica que só serve a opressão. É sempre uma questão de analfabetismo funcional e egoísmo básico. Quantos mais migrantes terão que ser torturados pelos caminhos da miséria? Quantas mais pessoas perseguidas pela origem, cor da pele, credo ou orientação sexual? Por quanto mais tempo terão os homossexuais que ter medo de demonstrar afecto em público, quantas mais mulheres terão que morrer às mãos de ex-companheiros ou maridos ciumentos, quantos mais transexuais terão medo de existir? As leis mudam, mas a interpretação da lei e os costumes que as pessoas defendem é que contam, o que dizemos e fazemos todos os dias é que mostra quem somos. Ontem tive orgulho dos meus compatriotas pela onda de sororidade e solidariedade em geral para com a candidata à Presidência, desenrolando-se em múltiplos lábios vermelhos virtuais contra o fascista que a atacou com as armas da tacanhez popularucho-passadista. Gostaria de os encontrar mais vezes nas ruas lado a lado, nos trabalhos, nos transportes, nas reuniões de condóminos, nos bares, nos restaurantes, nos cinemas e nos teatros quando re-abrirem; no espaço público, real e ocupado por todos.

Há quem defenda que não se fale com racistas ou, igualmente absurdo, que não se devem confrontar comportamentos sexistas ou homofóbicos para não se lhe pôr holofotes em cima e, com isso, oferecer publicidade gratuita que os façam crescer. Contra a apatia perante a instalação do vazio do pensamento, a esses bem intencionados que gostem de ler filosofia, sugiro uma passagem mesmo que breve pelo “Eichmann em Jerusalém” da Hannah Arendt. Custará assim tanto atentar ao que já foi tantas vezes interrogado, reflectido e provado sobre os mesmos assuntos? NÃO AGIR PERANTE A OPRESSÃO SAI SEMPRE CARO. E estar só a cumprir ordens não é desculpa. É também por isso que é imperdoável escolher não votar. A abstenção, como o silêncio, só fortalece o opressor, seja ele fascista, neoliberal, corrupto ou amoral. A democracia tem falhas, a liberdade de expressão é bonita e a constituição é para respeitar, há que deixar os fachos falar. Mas isto só vai lá se não deixarmos de os confrontar, nas palavras como nos gestos (e já agora, de preferência com palavras e gestos que não perpetuem expressões que humilham e destroem, como algum humor tem feito em jeito de espelho para devolver insultos ao fascista que pretende desmascarar). Todos os dias. Nas comunidades e em público, não me canso de dizer isto. Não há anarquia que se compadeça com apatia sistémica.

#VermelhoemBelem

Citando mais uma letra de uma música do “Pano-Cru”, o tal álbum do famoso cantautor que a ditadura empurrou para o exílio aos 20 anos por se ter recusado a ir à guerra: O fascismo é uma minhoca que se infiltra na maçã, ou vem com botas cardadas ou com pezinhos de lã. Tenho pena, Sérgio, mas ainda não foi desta que se acabou o badalo. O badalo não acaba se todos os pintos, que entretanto cresceram e têm as suas responsabilidades cívicas, não continuarem a piar a alto e bom som, abandonando os clubes de cavalheiros - ou quaisquer outros - de que ainda possam sentir fazer parte. Ou aprendemos a piar todxs juntxs ou ainda se nos acaba o pio de vez. O Galo É O Dono Dos Ovos - YouTube

 

Comments

  1. Pois é. Eles não desarmam mas nós também não.

    ReplyDelete
    Replies
    1. Que as nossas armas sejam as da paz e amor.✌️

      Delete

Post a Comment

Popular Posts