O tempo da outra senhora
É um dia triste para mim, hoje. Foi trágico para algumas mulheres e alguns homens da minha geração, acordar sabendo que se sentem mais legitimados os saudosistas do fascismo no nosso país, bem como os racistas, os homofóbicos, os misóginos e os egoístas cheios de ódios e demais fragilidades, que preferíamos terem ficado nos tempos que dizíamos ser da outra senhora. Mas Portugal não é imune às sombras que assolam o mundo. Vão morrendo os guardiões da memória de duras batalhas pelo direito à prosperidade de todos e às várias liberdades. Entre nós, seus descendentes directos, não há, infelizmente, muitos que se tenham realmente dedicado ao aprofundamento da pouca cultura política que o ensino oficial formal nos ofereceu. E agora pagamos a factura: grande parte dos mais velhos que restam deixaram de poder votar e muitos dos mais novos não o sabem fazer em consciência. Há quem confunda símbolos com acções e inacções de consequências reais ou apatia com anarquia e também quem nunca tenha sabido o que é ideologia política, sem que alguma vez se venha a aperceber da grave lacuna que constitui a ignorância nesta matéria. Eu tive a sorte de ter pais verdadeiramente democratas que, não tendo sido com certeza um modelo de virtudes, não falharam no seu papel de educadores de valores civilizacionais.
Por isso me animou tanto a primeira mensagem expontânea do Max, que foi em busca de ingredientes novos ao supermercado. Ele veio ao meu encontro aos 7 anos de idade para aprender português e agora, aos 14, já gosta de discutir nessa língua o que são a mobilidade social e os indicadores de desenvolvimento humano que, por sua vez, indicam do grau de desenvolvimento de um país. Também gosta de ouvir alguma da música que lhe tenho mostrado enquanto trabalhamos textos e receitas, tanto da erudita, como da popular, fazendo pausas da dos charts, que constitui paisagem única do grosso da sua geração. De literatura não gosta tanto, mas lá o tenho conseguido divertir a interpretar em voz alta as personagens do Principezinho e de mais ou menos enfadonhos contos populares do programa escolar obrigatório, aprendendo, quase sem se dar conta, a decifrar metáforas e provérbios. Mas o que ele mais gosta de fazer comigo, usando o salazar, cujo significado da nomenclatura muito cedo apreendeu, são bolos, bolachas, mousses e tartes. A autonomia é um dos valores mais altos da educação da infância neste país, pelo que desde muito cedo lhe é permitido escolher açúcar, carne e hidratos de carbono por oposição à fruta e aos legumes. A respeito da roda alimentar e das funções de vitaminas, minerais e demais nutrientes para o crescimento e defesa contra doenças, lá fui convencendo o rapaz a cozinhar sopinha de tomate, ervilhada ou feijoada vegetarianas. Finalmente acordámos em cozer grão amanhã, de que ele não gosta, para fazermos um puré com tomate assado, lima e manjericão a acompanhar um bolo de polenta e malagueta. Acho que o que o convenceu mesmo foi prometer-lhe ensiná-lo a usar uma panela de pressão, que vou levar comigo para a lição. Ele não conhece leguminosas sem ser as de lata. Para mim, como não me canso de dizer, ensinar uma língua não se reduz à articulação da sintaxe e fonética ou sequer à semântica. São todos os hábitos saudáveis e ensinamentos de gerações, os que resistem enquanto progresso autêntico, essenciais à vida biológica e do espírito, que definem uma cultura e que formam um determinado mundo; aquele que, através de linguagens conscientemente escolhidas, pretendemos transmitir.
Não me venham dizer que se vão tornar obsoletas algumas das profissões mais nobres da existência para serem substituídas por batalhões de operadores de call centers, designers ou programadores tecnológicos, não obstante a sua relativa importância. Não há subsídio universal que possa compensar a ausência de educadores, artistas ou pensadores livres no mercado de trabalho (por mais que este os dignifique se impedidos de trabalhar). O que é ou não relevante não é o sistema neoliberal vigente que pode ditar.
Deus morreu há muito e a humanidade ainda tem medo da morte.
Contra os canhões pensar, pensar.
Que se fodam os consumistas. Celebremos os que alimentam.
Vamos continuar a ensinar o diálogo e a capacidade de escutar.
O tempo da outra senhora:
“ (...) esta expressão é anterior ao 25 de Abril e tem origem nas relações domésticas. A Senhora era a dona da casa e aí punha e dispunha. Era ela que ditava as leis da organização da casa, a serem cumpridas pela criadagem. Quando a senhora da casa morria, havia uma nova senhora (a filha, a nora, a nova mulher do viúvo que entretanto casaria), a ditar a organização da casa, e essa organização sofria alguma alteração; a forma de gerir era, naturalmente, diferente. E surge então a expressão «o tempo da outra senhora», distinto do actual. ” https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/o-tempo-da-outra-senhora/13622
Isso. Queria também dizer que é esse sistema neoliberal que é preciso sempre desconstruir e atacar. É esse sistema vigente, neoliberal, que veicula e promove e faz nascer essas figuras e as alimenta, figuras que se autopublicitam anti sistema com o apoio e conivência do próprio sistema apenas interessado em mais cidadãos consumidores. Nas eleições em Portugal há outro olhar que devemos promover. Foi a eleição onde uma mulher obteve o maior resultado de sempre, se a isso juntarmos os votos das duas mulheres podemos ver algo de positivo. É necessário não esquecer que o cidadão eleito, neoliberal e populista moderado, teve o apoio de dos dois partidos que partilham o poder pos-ditadura, um de centro esquerda e outro neoliberal. Ainda com o apoio do outro partido de direita e conservador que também já participou em governos. Alguns dos votantes dos dois partidos de direita preferiram votar no candidato de extrema direita. Alguns votantes do partido de centro esquerda e de esquerda votaram na candidata socialista. É importante não esquecer que o candidato de extrema direito foi membro do maior partido de direita, que foi candidato por esse partido à Câmara de Loures e perdeu e que esteve anos a comentar e a defender num dos canais com maior audiência o maior clube de futebol de Portugal. Outro facto importante a que a esquerda não tem dado a devida atenção é o facto de o canal público de televisão estar cada vez mais nas mãos e desenvolver conteúdos de direita ou, até de extrema direita. Um dos jornalistas mais importantes desse canal já tentou branquear o genocídio praticado pelos nazis, os pogramas de"informacao"ou "debate", nos dois canais do Estado, direccionam constantemente o debate para a promoção dos ideais de direita (ex: na análise dos resultados das eleições não havia nenhuma mulher, é só um exemplo, porque poderia ser mulher e representante dos ideais de direita ou extrema direita. As sondagens são feitas por duas instituições claramente de direita Universidade Católica ou jornal Observador. Dado isto, penso que não houve nenhuma vitória da extrema direita, antes a continuação é confirmação do ataque consertado do movimento neoliberal pro-fascista que, desde sempre, procura manter e desenvolver as suas políticas de opressão e exploração.
ReplyDeleteMuitíssimo obrigada pelo comentário culto e reflectido, que convida ao aprofundamento informado dos resultados das eleições presidenciais. É um gosto imenso ter leitores assim. Gostei particularmente das referências ao papel actual do jornalismo no alicerçamento do sistema neoliberal. Concordo com o facto da extrema direita não ter tido nenhuma vitória, mas acho, no entanto, que poderá vir a ter em breve se o povo não se acautelar na luta contra a sua expressão nas urnas. As marcas do regime em que vivemos vão causando muita mossa nas vidas das pessoas e os populistas aprendem, rapidamente e ainda para mais com os exemplos internacionais de sucesso e em momentos de grande crise, a fazer uso delas.
ReplyDelete*aprofundamento informado da leitura dos resultados das eleições presidenciais.
ReplyDeleteUm dia, em Lisboa, perguntei a um amigo foto-jornalista para que jornal trabalhava ele e ele respondeu-me que trabalhava para vários mas que era indiferente porque eram propriedade de dois ou três grupos económicos, entre eles o governo de Angola. Pensemos, então, que regime político vigora nesse país e, por exemplo, em todas as ligações criminosas já conhecidas no caso do falecido Banco Espírito Santo...
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