Minudências da casa
Uma minudência é um detalhe, diz-se que miudeza ou escrupulosa observação (o vocábulo miúda, coisa pequena sem valor, está na origem desta miudeza, o que constitui, desde já, motivo do meu interesse para próximas reflexões). Por extensão, pelo dicionário assim definida, é também o cuidado aplicado na realização de alguma coisa, vulgo capacidade de atentar a pormenores (que pode ditar do sucesso ou insucesso final do acto em questão, acrescentaria eu). É que entre esquecer o sal da massa do pão ou deitar uma peça fina, que não vai à máquina, no rol da roupa ensacada para ir a lavar, vai um mundo de consequências; sobretudo havendo variados alimentos para saborear, se a roupa for de pertença alheia e o tema mais velho que a Sé de Braga na longevidade do casal enquanto tal.
Passo a explicar: cá em casa quem lava, limpa, mantém e conserta é quase sempre o meu companheiro de há quase 23 anos, dos quais cerca de 21 a viver no mais alegre que triste, e muito menos indiferente, concubinato. Não que eu não gostasse de partilhar deste tipo de responsabilidades da maioridade, de desenvolver até a minha autonomia na lida com coisas menos fascinantes do quotidiano ou que o título de preguiçosa inveterada me identifique (confesso que há 20 anos grande parte da ideologia de higienização e limpeza do lar e seu recheio me era estranha). Adoraria poder decidir com mais frequência da música ideal para o grande momento de abstracção que constitui o acto de lavar a louça depois de beber um descafeinado e já me ter aborrecido a ver as notícias, passar um espanador pelos cantos recônditos desfazendo teias de aranha a medo quando reparo no pó acumulado, fazer uma máquina de roupa quando fico sem cuecas preferidas na gaveta, lavar a banheira a fundo quando me apetece tomar um banho de imersão ou despejar o lixo quando os baldes e cestos estiverem cheios. E por aí fora, ao meu ritmo ou por obrigação definida num calendário por incompatibilidades inconciliáveis no momento de estabelecer prioridades da vida doméstica. O problema é que não há calendário ou comunicação que aguente, o homem vai à frente e faz tudo, ainda por cima quase sempre rápida e eficientemente ou, pelo menos, melhor que eu. Às vezes chamo-lhe formiguinha atómica, inspirada num cartoon dos anos 60, mas ele até acha piada e fica simplesmente aliviado quando, finalmente, se senta a relaxar no seu ambiente e dentro do horário por si estabelecido, sem tarefas por cumprir na lista mental ou escrita de coisas por fazer que quase todos os adultos, normalmente, trazem consigo. Mas achar que se pode inferir a natureza da normalidade é algo há muito erradicado entre nós. Em rigor, são o respeito mútuo, o senso comum e o equilíbrio na balança das capacidades e fragilidades a que o amor obriga, que nos têm mantido serenos na generalidade das situações sensíveis no decorrer do nosso tempo juntos ao longo de muitas casas, pequenas e grandes decisões...
Mas hoje chateei-me à grande e duas vezes, uma por causa de uma esfregona e outra por causa de um vestido - ou isto foi o que ele pareceu achar no primeiro impacto às minhas reacções intempestivas. Tornou-se depois claro, espero, que o que me transtorna, não sendo o mesmo que o que me incomoda, é a retirada do meu poder de decisão sempre que as consequências da minha inacção ou da sua interferência excessiva são visíveis ou se, noutras áreas da convivência, já me venho a confrontar com sentimentos de impotência. Ambos os casos, falta de acção ou excesso dela, podem indiciar negligência. Enfim, continuamos em construção.
Se o meu transtorno é exacerbado é porque para mim não se tratam de migalhas: o meu espaço, também dentro de portas, nunca foi fácil de obter e menos ainda de manter. Não vou deixar de o proteger e não me apraz sentir que preciso que tomem conta dele por mim. Em resposta às pessoas que me dizem que tenho sorte por “ter” um homem assim digo que sim, pois tenho. Mas não é por ele fazer tarefas ou tomar decisões por mim. Basta-me que faça a sua parte e me deixe fazer a minha. Isso, sim, é igualdade e com auto-determinação não se brinca.
Love it. E o boneco até é parecido
ReplyDeletehaha... não estou certa de que ele sinta o mesmo, mas obrigada.
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