Traço a traço, passo a passo
Conheci o meu companheiro, desde sempre, a desenhar e a contar estórias. Às vezes em simultâneo, outras em separado. Alguns familiares e amigos próximos conhecem as suas duas obras, editadas por nós cá em casa(s) para oferecer aos sobrinhos e afilhada(s): uma sobre a saída do ninho na perspectiva da expansão e aprendizagem, a outra sobre o futuro parecendo um regresso a casa ou a um passado imaginado. Há pouco falámos sobre os tempos da escrita a que ambos nos dedicamos nestes dias, os meus no presente e passado aproximando-me do futuro, o dele no futuro enquadrando o presente. E também o passado, diria eu.
Pensava nisto quando me lembrei de um famoso livro de auto-ajuda, O Segredo, que a certa altura afectou quiçá positiva, mas sobretudo obsessivamente, uma querida amiga que eu tinha, que começou a dizer que tudo é possível. Era sobre a capacidade de realizar o que se deseja através de técnicas de visualização ou re-posicionamento da perspectiva a cada momento de vida, no sentido de bloquear obstáculos à concretização do ideal individual. Ela começou a parecer querer explicar-me, com uma urgência crescente, que eu podia o que quisesse, bastava acreditar em mim mesma e visualizar o futuro (o que na altura me irritava de sobremaneira, porque eu estava a tentar fazer o primeiro luto real da minha vida enquanto fazia limpezas para sobreviver e tentava aprender a pensar na segunda língua estrangeira no espaço de dois anos, dois países. Tinha finalmente chegado a Berlim-para-ficar há uns meses... e comecei a chamar-lhe ditadora da positividade tóxica para mim mesma, interiormente, mas o que é certo é que nos fomos afastando). Não me parece que seja um segredo, mas simples parte integrante do processo de amadurecimento, reconhecer o que nos importa mesmo e fortalecer a nossa vontade no sentido da concretização efectiva de um plano, estratagema, cronograma, esboço, guião, ou o que quer que seja que cada um chame ao suporte para chegar ao resultado esperado dentro do enquadramento escolhido: temos que escolher o papel que queremos ter com toda a clareza, seja em que projecto for; e depois conhecê-lo profundamente dando-lhe vida.
Para desenvolver um projecto de vida não basta visualizar o que se deseja; para o ir tornando efectivo também é preciso ser capaz de estabelecer objectivos concretos, que se vão tentando cumprir a médio e longo prazo e que implicam esforço e dedicação continuados. Com todos os desvios e tempos de espera e reconstrução a que as vicissitudes e os imponderáveis da existência nos obrigam, muitos ou poucos dependendo da biografia e da História - há que saber o que se quer, mas também o que não se quer, e continuar a agir em consequência. Chegados à meia idade, quando a resolução da equação entre o que se quer e não quer ainda se revela alternativa ao sistema vigente, ao que já se conhece e renega como possibilidade, é precisa coragem quer para persistir acreditando no que se consegue visualizar, quer para prosseguir agindo na direcção da realização do que se visualiza. Eu prefiro se com alguma poesia, capacidade de improvisação e espírito de equipa. Indubitavelmente comunicando, connosco mesmos e com quem está presente.
Mas, se nos abrimos à possibilidade de interacção em mundos alheios e à consequente possibilidade da transformação pessoal progressiva, como cristalizar os tais objectivos concretos e sobretudo o tempo ideal da sua concretização, aquele que garanta a manutenção da direcção? Como destrinçar o que é absolutamente necessário preservar e desenvolver daquilo que ainda pode vir a ser qualquer outra coisa, porventura mais completa ou que melhor nos complete?
A certa altura, talvez seja o conjunto de todas estas estórias firmadas na escrita que vá, discreta e certeiramente, tecendo o destino final. Importante é cuidar sempre do solo e ir desbravando terreno inóspito para lá chegar, nem que seja ao caminho realmente comum. É no que ambos nele com consciência pomos - bom, mau, excitante, confortável, perturbante, estimulante, apaziguador e muitíssimo árduo também, mas em verdade - que eu nos quero dia-a-dia a continuar.
❤️
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